sexta-feira, 22 de julho de 2011

Thiaguera

     Não lembro a primeira vez que vi Thiago, porque ele sempre fez parte da minha vida, em vários momentos e fases. Primo da minha melhor amiga Flavia, acho que conheci Thiago antes dos 15 anos. Depois fiquei muito amiga de sua única irmã Juliana, que tem o humor fino, de sarcasmo inteligente e que tem uma potência vocal tremenda, infelizmente inexplorada. Moreno, de sorriso largo e branco, sincero e os olhos... imensos, azuis e profundos.
  Inegavelmente lindo e com talento musical acima da média, ainda adolescente tocava bateria numa banda rock`n`roll, Gigawats, com ele entrei no mundo do Led Zepellin e tantos outros clássicos, conheci o mundo rock santista. Apesar de toda a sua beleza e carisma, nunca houve nada além de amizade entre nós - depois acabei namorando com o primo dele e irmão mais novo de Flavia, Pedro, mas essa é outra história, já que no fim viramos todos uma grande família.
     Thiago Frederico Vieira de Almeida Ribeiro sempre foi um rebelde, seu pai partiu precocemente, quando ele era um menino de 12 anos, talvez por isso fosse um eterno inconformado, procurando uma forma de amenizar sua dor. Apesar de muito assediado pelas meninas, sempre foi de namorar sério, por longo tempo, uma de cada vez. Na adolescência bebia como um jovem adolescente. Mas essa fase nunca passou e ele bebia cada vez mais. Também era hipocondríaco ao extremo e tomava remédios para dor de estômago, azia, dor de cabeça e todas as suas incontáveis dores. Sua vida social intensa, tocando sempre na noite, no lendário Bar do Torto, o levava a beber cada vez mais - e não era mais socialmente. Era um tímido irremediável e o álcool o liberava para falar qualquer besteira, sem pudores. Bêbado boa praça, era o que todos queriam sentado na mesa, nem que fosse só para sorrir... e por aguentar noites após noites de bebedeiras, recebeu o apelido que passou a identificá-lo: Thiaguera!
  Cada vez que encontrava Thiago, em festas de família, em shows, em nossas viagens para sua casa de Paúba, litoral norte de São Paulo, percebia que ele já não ficava sóbrio. Bebia logo pela manhã, mas eu pensava que era porque estávamos em viagem, ou festa...quando ele passou dos 30, constatei que era viagem sem volta. Mesmo assim, continuava adorável e lindo! Começou a andar com um pessoal mais MPB e tornou-se um virtuose da percussão, para alegria de sua mãe, a sambista Elenira Ribeiro. Era lindo ver mãe e filho tocando juntos. O último show emblemático de Thiago foi no Sesc Santos, com Elenira.
  Quando eu tive depressão profunda, quase morri por overdose de ansiolíticos, após minha recuperação, encontrei Thiago em Paúba, com um grupo muito legal de amigos: Conrado, Beto Berman e mais um monte de músicos de Santos, foi um fim-de-semana inesquecível. Quando cheguei em Paúba com Dora, ele já (ou ainda) bêbado, me deu um abraço forte e disse: "Que bom você aqui! Vamos brindar à vida!".
 
Olhos que nunca perderam o brilho

  Em novembro de 2005 eu  já vivia meu calvário de ver Dora apenas em Visitário Público. Para minha sorte, Pedro (o primo do Thiago) começou a trabalhar num quiosque na praia da Enseada, no Guarujá, onde tenho apartamento e morava na época, e ficou por tempo indeterminado como meu hóspede. Me conhecendo muito bem, Pedro levou seu filho João, de 2 anos,  para passar uma semana comigo, ele sabia que o vazio de não ter a filha que sempre tive era uma dor dilacerante e, muito sabiamente, trouxe uma criança para eu exercer a função de mãe, com os mesmos cuidados que tinha com Dora. E João era um menino carente de mãe (mas essa também é outra história).
  Num sábado de manhã, quando me preparava para mais uma ida doída para São Paulo, ver minha filha encarcerada, me ligou Vera, mãe de Pedro e Flavia. Era para dizer que acordou rezando por mim, por Pedro e Thiago e que logo recebeu um telefonema dizendo que Thiaguera estava internado.E para avisar Pedro, porque Thiago passaria por uma operação muito séria, correndo risco de morte. Confesso que foi um soco no meu estômago, mais um. Pedro saiu mais cedo do trabalho e foi ver Thiago.
  Thiaguera teve pancreatite, seu pâncreas estava necrosado, seu estômago também não estava muito bom, seu coração parecia fraco e seus rins estavam pifando... e eu não podia ir ao hospital, porque precisava ver Dora. Pedro foi e quando nos encontramos à noite, falou que a situação era crítica e que Thiago não tinha a menor noção do que estava acontecendo: "Dri, você acredita que ele falou que assim que sair do hospital vai passar no quiosque para tomar uma cerveja?" . Acredito.
  Eu não sabia o que fazer, então lembrei da última namorada de Thiago, que ele ainda amava, Gaia Rondon. Conheci Gaia por ser namorada dele, pessoa inteligente, afetuosa, mas não tinha como ligar para ela e contar o que estava acontecendo. Pedi para outra amiga em comum, Tatiana, fazer isso por mim. Tati me retornou a ligação: "Dri, a Gaia falou que essa história é passado, morreu para ela!", expliquei que quem poderia morrer era o Thiago e que esse era o momento de não se arrepender pelo que não disse ou não fez. Então Gaia foi até o hospital. Eu não estava lá, mas os dois se declararam e perdoaram mutuamente e fizeram juras de amor e ele prometeu que sairia dessa e nunca mais beberia. Thiago tinha 33 anos.
  Na operação seu coração parou 3 vezes, numa delas por 20 minutos. Isso traria lesões cerebrais irreversíveis. Ficou em coma. Houve reza de todos os lados, Thiaguera conseguiu reunir evangélicos e espíritas, católicos e umbandistas, daimistas, judeus, muçulmanos, todos os credos rezavam por ele. Quando não havia mais esperança - seus rins também pararam de funcionar - me ligaram e fui até sua casa, ficar com João (filho de Pedro) e Laura (filha de Juliana e sobrinha de Thiago), para os adultos seguirem até o hospital. Elenira já estava sob efeitos de calmantes, avisando os amigos de São Paulo que seu coraçãozinho estava muito fraco e havia sido desenganado pelos médicos. Ver aquela mãe ali, meio dopada, meio conformada, partiu ainda mais meu coração massacrado. Eu também sou mãe! Thiago é meu amigo! Sua família é minha família, que me agregou tão fraternalmente...
  Fiquei  no apartamento com as crianças. Eu, a mãe afastada judicialmente da filha, responsável por duas crianças ao mesmo tempo! Tendo a sensatez de não chorar e desabar na frente delas. E então, quando eu esperava apenas a hora da morte, chega Lúcia tão feliz. Os órgãos dele voltaram a funcionar, reagiu. Alguns dizem que foi milagre, por tanta reza de todos os credos. Eu acho que foi para dar uma lição aos preconceituosos.
  Thiago saiu da UTI, mas ficou num estado de dependência total, comia e respirava por aparelhos. Não se mexia, não falava, apenas movimentava seus lindos e imensos olhos e, por vezes, chorava. Seu corpo tão frágil também sentia falta do álcool. Como eu vivia com insônia, por conta do processo que se tornara minha vida, ficava no quarto do hospital com ele, por algumas noites. Na primeira, ele ficou muito nervoso e tirou um tubo. Eu tinha colocado Chico Buarque para ele ouvir. Fez uma cara de contrariado. Mudei para Rolling Stones. Tranquilizou-se e dormiu.
  E então pensei nessa coisa efêmera e sutil que é a vida. E eu não podendo nem falar ao telefone com minha filha. E Elenira não podendo escutar a voz aveludada e doce do filho. Desde essa época o pai torturador de Dora (isso não pode ter outro nome a não ser tortura) não permitia contato que não fosse no Visitário, onde deliciava-se com seu sadismo mórbido.  Alguém ainda tem dúvidas do por quê eu fugi desse lugar e dessa pessoa nefasta? Nem quando eu tentei contar o que estava se passando com Thiago, se comoveu, acho até que ficou satisfeito por mais esse sofrimento na cabeça e no corpo de alguém que teve depressão.
  Até que Thiago teve alta do hospital e seu tratamento passou a ser Home Care.Estava em casa no Natal de 2005, era um sábado e eu acabara de voltar do Natal mais triste de todos, no Visitário (já postado nesse blog). Estava desolada. Pedro ainda insistiu muito para que eu fosse passar a noite de Natal na casa de Elenira, como já havia feito em tantos anos. "Dri, pensa, a Dora está viva, o Thiago está vegetando. Vamos dar uma força pra tia Elenira". Pedro parecia um anjo querendo me tirar do inferno. Também tão lindo, com olhos profundamente azuis. Mas não fui, me sentiria pior estando tão triste dentro de um cenário ainda mais trágico.

Amigos de Fé

   Além de triste, ficou muito caro tudo isso! Remédios, enfermeiros, fraldas geriátricas... e então, seus "amigos de bar" realizaram diversos shows e bazares em prol de Thiaguera. Michel Pereira, proprietário do Torto, dedicava uma noite por mês com renda revertida para o Thiago. Solidariedade de toda parte. Será que Thiago tinha um mínimo de noção de como era querido? De como atingira o coração das pessoas com sua música, amizade e desajuste? Sim, ele era um desajustado, com tanto talento e beleza, poderia ter mudado o mundo de outra forma. Mas não, foi por sua própria dor, sua ferida exposta que transformou tantas pessoas e tantos lugares.
  Quantos não pararam de beber depois dessa  história? E o que dizer de Gaia? Ficou ao lado de Thiago, segurando sua mão e dizendo que o amava. Quanta redenção! E eu... após ver tanto sofrimento, depois do Natal fatídico, decidi não ver mais a Dora  no Visitário. Mas um mês depois, porque mesmo avisando que não iria, o pai sádico e cruel, levava Dora até lá, para mostrar que a mãe não foi, tive que ir ver minha filha. O próprio perito forense, meu querido Sidney Shine, disse que era melhor eu ir, que para  Dora não importava se era Visitário Público ou Disneylândia, ela só queria ver a mãe. Então fui, no dia 28 de janeiro, mais de um mês depois. E foi nesse dia, que depois conto melhor, que "em atitude tresloucada", fugi com Dora do Visitário.
   E assim cometi um grande erro. E após o grande erro, consegui o direito de levar minha filha para casa, nos finais de semana! E fui com Dora ver Thiago e sua amiga Laurinha, que não entendia e nem acreditava que aquele corpo magro e frágil era do seu querido tio.
  Então, após mais de 3 anos ensinando o que é amor desinteressado, amizade verdadeira e resignação, Thiaguera partiu, no dia 18 de janeiro de 2009, pouco antes de Miranda nascer. E deixou saudade e incríveis lembranças em todos os que tiveram a sorte de participar de sua louca e curta vida. Essa história jamais será esquecida, assim como a música, o sorriso e os olhos de Thiaguera.

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