sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Seo Bacana, Dona Célia

    Antes de sair de casa ainda falei sobre transporte público com o Marcos Sérgio, que utiliza por opção, eu  por necessidade, sinto falta de ter um carro. Mas também gosto de reparar a arquitetura da cidade, sem me preocupar com o trânsito.
    O primeiro ônibus peguei no Guarujá, onde o transporte é bem falho. Ao meu lado sentou um senhor simpático que logo puxou assunto, contou várias histórias da sua vida. A namorada Yoko, cuja a família japonesa não o aceitou, por ser negro e pobre. A tentativa com uma nordestina arretada, que também não deu certo, partiu para o noivado com a prima desta, mas ficaria tudo em família e também não daria certo. Nunca desistiu de tentar encontrar um amor, até que se casou e vive com a mulher até hoje. "Não dá certo com uma, tenta com a outra, o ser humano não nasceu para viver sozinho", afirmou com a sabedoria do tempo. Como adoro ouvir histórias, dei total corda para o senhor simpático. Mas era muita vida e ele não parecia ter tanta idade: 
     - Tenho 71 anos, é que negro não envelhece.
     - Não é só isso, o senhor deve ter sido atleta!
     Orgulhoso mostra o braço musculoso:
     - Eu jogava vôlei. Esporte é uma das melhores coisas da vida!
     Contei que nadava e como isso me abriu portas para conhecer pessoas, lugares e ser quem sou. Falei sobre competições de master, que ele poderia participar.
    - Ah, já me chamaram, mas tenho que bancar a viagem, inscrições, estadias, não dá...
    Tão triste ouvir isso de um ex-atleta. Mas aquele senhor não tinha tempo para tristeza e percebendo minha cara desolada foi logo sendo galanteador:
     - Master é a partir dos 25 anos, né? Por isso que você é master.
     - Meu caro, já passei dos 25 há 18 anos!
     - Não é possível! O esporte é mesmo milagroso.
     Pegou minha mãe e deu um beijo despedindo-se, após eu me apresentar. Antes que partisse perguntei seu nome.
     - Andrade, mas todos me chamam de Bacana!
     E partiu com um sorriso maroto.

   Atravessei para Santos na nova barca, toda moderna, rápida, com ar-condicionado, poltronas confortáveis, mas com TV LCD passando propaganda do Governo de São Paulo o tempo todo, faz parte do sistema, usar a máquina do Estado para divulgar benfeitorias que são seu dever. Poderia mostrar algo mais educativo, ecológico, lúdico, sei lá. Mas como estava com a lembrança do seo Bacana na cabeça preferi não me indignar, comecei ouvir minha música e fiz meu o meu próprio videoclipe.
      Travessia feita. Chego em Santos, onde o transporte é diferente, funciona. Tem linhas para todos os lugares o tempo todo. Peguei até o ônibus errado, mas consegui consertar o erro no Terminal Rodoviário, sem perder tempo ou dinheiro com isso. Então ajudei uma idosa com dificuldade de subir as escadas (sim, sou do tipo que ajuda velhinho a atravessar a rua), também a coloquei sentada e fiquei ao seu lado. Um rapaz me cutucou e perguntou se eu estava com ela. "Não, só estou ajudando".
      Então o moço (de menos de 30 anos) contou que já a viu perambulando pela rua. Pronto! Uma angústia tomou conta de mim. O fantasma do Alzheimer estaria ao lado? Segurei sua mão e perguntei para onde ia. Respondeu negativamente  com a cabeça. "A senhora não sabe?". Novamente balançou a cabeça com olhar vago. Meu estômago embrulhou, pedi algum papel, documento que desse uma pista sobre seu paradeiro. Me entregou sua identidade. "Dona Célia, a senhora sabe onde mora? Precisa de ajuda?"
      O pior estava para ser ouvido. Tinha sido despejada e foi morar na rua - por isso o rapaz, que já havia descido, a via perambulando pelas ruas - então foi recolhida para um abrigo no centro da cidade. O negativo com a cabeça era porque não queria falar sobre aquilo. Ela estava limpa, arrumada, penteada, de vestido azul e bolsa preta.  Perguntei se não tinha ninguém. Não, seu filho a abandonou. Precisei respirar fundo para não chorar. Em seguida pediu para ajudá-la a levantar e desceu no ponto do abrigo. 

     Num momento conheço um homem com orgulho da sua história, da sua negritude, de ter criado bem 5 filhos, seus netos, que praticou esporte e vive ativamente. No outro, uma mulher sem dignidade nenhuma, que não quer nem falar quem é ou para onde vai. Abandonada!
    Seo Bacana tem razão, o ser humano não deve viver sozinho. Dona Célia também está certa em não querer falar sobre seus infortúnios... assim como eu, deve ter nó na garganta e vontade de chorar. A velhice pode ser tão digna ou humilhante e nem depende de nós.

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