quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Minha Consciência Negra


    Dia da Consciência Negra. Um feriado, feito para a reflexão e debate, não apenas para viajar e ir à praia. Mas vejo em redes sociais pessoas pedindo o Dia da Consciência Humana, amigos negros, inclusive. É fato que o Brasil é um País racista. Segundo pesquisas, 95% da população entrevistada não se diz racista, mas 90% conhece um racista, o que revela a hipocrisia da nossa sociedade. Também tenho visto campanhas contrárias ao sistema de cotas, com foto de criança branca, suja e pobre. Particularmente, acho que a cota racial legitima a existência do racismo, deveria ser sim por baixa renda, o que daria na mesma, porque a maioria miserável do País é negra ou parda. Por outro lado há uma dívida social com os negros desde a época da escravidão.
    Mesmo após a Lei Áurea continuaram sendo escravizados, porque foram libertos, mas analfabetos, sem posses, sem emprego. Restou construir barracos nos morros e iniciar o “sistema habitacional” das favelas. Os presídios tem maioria negra, mas não porque negros são mais bandidos e sim porque há mais negros no Brasil e porque a desigualdade social os faz mais pobres. No colégio o aluno que tirava notas mais altas do que as minhas era um negro, gordinho, de óculos, Marcelo. Não sei por onde anda, mas imagino que tenha chegado à universidade por mérito. Era tão dedicado aos estudos! Um nerd que me dava até raiva de tanto que o menino sabia! Gostava tanto dele, estudar com ele e ver seu boletim enfeitado de 10. Quando eu ficava “magoada” por ele ser melhor aluno do que eu, ainda me consolava, lembrando-me de que eu era atleta e não tinha tempo de estudar tanto quanto ele.
    Fiz o colegial em escola particular, raros os negros. Como o ensino público estava ficando cada vez pior, no vestibular, a maioria que passava, era branca. Havia apenas uma negra no curso de jornalismo, e nem era da minha classe. Fiquei muito feliz quando minha professora de matemática da 7ª série do ginásio me pediu para adicioná-la no facebook e ainda me perguntou se lembrava dela. Ora, como esquecer a primeira recuperação da minha vida? E como esquecer uma professora excelente? A única professora negra que tive? Zenilde Carmo era exemplar e representava a esperança para os negros e brancos de baixa renda, que desejavam chegar ao nível superior.
    Dia desses, conversando sobre arte e racismo com meu primo ator, Osvaldo Jr, chegamos à conclusão de que nos Estados Unidos há menos racismo do que no Brasil. Lá, quem é racista assume, há Estados declaradamente racistas. Mas no cinema norte-americano vemos negros em filmes por serem atores, interpretando qualquer profissional, em qualquer papel. Claro que há filmes em que é necessário ser negro, não dá para um branco fazer o Nelson Mandela. Já no nosso País há tantos bons atores negros, escalados apenas para fazer escravo, bandido, empregado subalterno ou o negro que sofre preconceito. Li uma entrevista com a linda Taís Araújo, dizendo que só sentirá que não há racismo quando receber um roteiro que não seja “mulher negra”, pois só é escalada por ser negra.
   Houve uma época em que fiz várias matérias sobre adoção, no jornal Diário do Grande ABC. A estatística era terrível: pais adotivos ficavam mais de 5 anos na fila, esperando uma menina, branca, recém-nascida. Enquanto isso, os meninos negros, com mais de 3 anos, não tinham outra escolha a não ser crescer nos orfanatos, para depois serem encaminhados à FEBEM. Não tinha filhas e nem queria ter, biologicamente, na época. Meu desejo sempre foi adotar uma criança após os 40 anos. Por ver tanto órfão negro decidi que adotaria um menino negro, com mais de 3 anos e uma menina negra, com mais de 5. Mas o destino me deu duas filhas incríveis, em situações inversas, que anularam, no momento, a realização desse desejo.
    Sou racista ao contrário. Se tiver que empregar alguém e o currículo dos candidatos for idêntico, mas se entre eles houver uma mulher negra, tem minha preferência. O motivo é simples: os obstáculos foram muito maiores para quem tem “cor”. Mulher de “cor”, então, além do racismo, sofreu machismo. Não que um médico, jornalista ou advogado negro tenha mais valor, mas, provavelmente, esses profissionais valorizam mais suas vitórias. Há mais receio em perder a vaga. Conheci minha atual advogada, Lucélia Nunes, na fila de protocolo, no Fórum de Ribeirão Preto. Quando chegou minha vez, não sabia se era para distribuir ou protocolar. Tão pouco o atendente sabia me dizer. Mas uma mulher elegante, bonita e jovial me pediu licença, pegou a papelada da minha mão e resolveu tudo. Agradeci e segui para o café. Mas fiquei olhando para ela e voltei. Perguntei se era advogada e pedi seu cartão. Ela até pediu desculpas por ter se metido na história. Mas o que me encantou foi justamente sua vontade de fazer a coisa andar. Sim, Lucélia é negra. Não nego que sua cor me fez admirá-la mais.
   Não cabe aqui sua história pessoal, mas as dificuldades que passou foram infinitamente maiores do que a dos advogados brancos. De todos os advogados que tive até agora, foi a que menos me cobrou honorários. Nem cobra estacionamento e gasolina, quando me leva ao Fórum. Quando parei de contabilizar os gastos com esse processo, já passava de 50 mil. Para ela paguei tão pouco. Espero um dia poder pagar tudo que faz por mim.
   Para finalizar minha consciência negra, conto que sofri na pele branca o preconceito por me relacionar com um negro. Conheci Jamiro em Búzios (RJ), dia 29 de dezembro de 2005, assim que cheguei na rodoviária. Ele, mais o restante da banda Nova Semente, foi nos buscar (eu e amigas). Gentilmente carregou minha mala. Estávamos hospedados na mesma casa e viajei para romper o ano lá, queria começar 2006 positivamente, já que 2005 foi marcado por perder a guarda da minha filha, meu primeiro Natal sem nem falar com ela. No final da tarde saímos todos para tomar cerveja num barzinho próximo. Uma amiga que sente atração por homens negros, já tinha me falado dele. Eu nunca tinha nem beijado um afro descendente. Muitas pessoas ao redor da mesa, músicos cariocas, mineiros e argentinos. Mas nas idas e vindas ao balcão e banheiro, ficamos sentados um ao lado do outro. Não me interessei por ser negro, mas por ser lindo, músico, sensível e muito educado. Na volta já nos beijamos embaixo de um céu limpo e estrelado. Nunca ficamos juntos de fato, mas nunca nos separamos também. Passamos às vezes mais de um ano sem nos ver, mas estamos sempre juntos em pensamento e amizade. Também no amor. Aquele tipo de amor familiar, sem posse e livre.
     Sua leveza me inspira, sua música é linda. Sempre o deixo livre e por isso, volta. Quando andávamos de mãos dadas pelas ruas, percebia olhares de contrariedade, como se aquela cor sujasse minha brancura. Como se fosse nojento uma branca dormir com um negro. Depois desse réveillon, Jamiro veio ficar dois meses comigo, no Guarujá. Já havia falado dele para minha mãe, mas antes de apresentá-los, tive de dizer que era negro. Infelizmente, tenho uma mãe que não se diz racista, que acha negro lindo, por isso não deveria se misturar com branco e ter filhos mulatos. Ironia ou não, ela tem uma neta de genitor árabe, com a pele muito escura e linda. Miranda passaria fácil por filha de Jamiro. Adoraria que tivesse sido. O amor, a amizade e a inteligência não tem cor, nem raça.

7 comentários:

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  2. Eu poderia dizer muitas coisas, mas estou colando o que coloquei em outro post hoje. Tenho tantos fatos e acontecimentos vividos sobre o assunto, que nem sei por onde começar. Minha mãe dizia que eu deveria mostrar que era negra, mas igualmente capaz. Eu não tinha dúvida disso. Quando fiz 15 anos, terminando o antigo ginásio, fui com minha irmã de 13 anos a todas as lojas de Vicente de Carvalho, aqui no Guarujá, tentar um emprego qualquer. Ninguém nos empregou e ainda riam da nossa audácia. Quando fiz 18, minhas amigas me aconselhavam a não fazer inscrição em concurso público, pois seria reprovada pela minha foto. Fiz vários, passei na maioria e fui chamada em todos que passei. No dia 20/10/1976, eu e minha irmã começamos juntas, como concursadas, na antiga Nossa Caixa, meu 3º emprego por concurso. Claro que éramos as únicas. Minhas filhas fizeram universidades públicas. Estive este ano na formatura de uma sobrinha nos USA. Outra sobrinha fez USP e agora está terminando MBA em Berlim. Filhos e sobrinhos fizeram universidades, têm empregos legais e sempre estão como exceção. O diferencial, no meu entender é a preparação psicológica. Eu sempre soube e passei a quem pode me ouvir que o que importa é vontade verdadeira e empenho. Qualquer ser humano, se quiser de verdade, pode chegar no topo. Todos que vi convictos e empenhados, superaram as barreiras. É claro que o policial não libera meu meus filhos e sobrinhos antes de checar se o carro não é roubado. Azar do policial que perde seu tempo. Quando alguém pergunta se a dona da minha casa está, digo que não, feliz. Convenci muitos pobres de todas as cores que poderiam ser o que quisessem, mas, infelizmente, a maioria acha que não tem como e não investem como deveriam. Quando digo que não concordo com as cotas nem com esse feriado, que não muda a vida de quem não corre atrás, aliás parei de falar isso, o mundo cai. Percebo ainda que de uma maneira geral o que falta é aumentar a auto estima e convencer os menos favorecidos, que podem conquistar o mundo, mas tem que se empenhar de verdade. Preconceito vai ter sempre, problema de quem o tem, nem ligo, tenho até dó.

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    1. Qdo digo que vc é exemplar, professora, não exagero, nem minto. Me deixar de recuperação em matemática foi uma ótima lição para aprender a lidar com frustrações, a aprender mais e entender melhor os números... que saudade da minha turma de ginásio. Era muita gente boa reunida, né?

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  3. Dri, tentei excluir o primeiro por ter uns errinhos, mas não consegui, Também quero te dizer que nunca perdi totalmente o contato com o Marcelo. Atualmente ele é diretor da ETEC Aristóteles Ferreira, em Santos. Tem um lindo casal de filhos e está super bem. O face dele é aberto, Marcelo Luiz. Se quiser, dá uma fuçadinha. Beijos!!!

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  4. Já exclui, embora não tivesse achado erro nenhum. Além de ser excelente na matemática, também é impecável no português. E obrigada pelas notícias do Marcelo, sempre soube que ele seria um homem grandioso, já fiz o contato :) Bjs

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  5. Gostei muito de seu artigo, não por ter falado sobre mim, mas por ter retratado o que sinto. No dia do feriado, estive no shopping com meu filho e, na praça de alimentação um homem branco, bem vestido, simpático, perguntou se poderia sentar na mesma mesa que nós e permitimos.
    Começamos a conversar sobre vários assuntos até chegar no "feriado" e sistema de cotas. Assim como Zenilde, coloquei minha posição contrária à ambos.
    Interessante que ele não se assustou e colocou sua posição (também contrária) e no final, acabamos conversando por duas horas seguidas. Conversa inteligente, saudável e edificante.
    Não passo minha vida lamentando por ser negra, tampouco coloco a cor de minha pele diante de cada ato que pratico; coloco sim a minha determinação e vontade de obter sucesso em tudo o que faço.
    Não foi fácil estudar e iniciar minha vida profissional como advogada. Ainda hoje, vejo clientes se assustarem quando são indicados por outros clientes e ao chegarem no escritório se deparam com uma negra. Aí é que fica bom pois tenho a oportunidade de mostrar meus conhecimentos e minha capacidade.
    Procuro a cada dia ser uma pessoa melhor, não para agradar aos outros, mas para minha própria satisfação. Sempre ensinei aos meus filhos que todos somos capazes e que não é a cor da pele que mede a inteligência ou possibilidades de sucesso de qualquer pessoa e sim a coragem, determinação, visão e principalmente, vontade.
    Sou feliz, tenho filhos maravilhosos, netos lindos e, nunca tive vergonha da cor da minha pele; tenho muitos clientes brancos, aliás são maioria, muitos se tornaram amigos, outros tem profundo respeito por mim, outros já fazem parte da minha vida, como você Adriana.
    Obrigada pelo artigo.
    Beijos!!!

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    1. Ah, Lucélia, como você é linda! Até quando me dá broncas... você também faz parte da minha vida e acho que minha intuição foi perfeita no dia que voltei para te pedir um cartão! Obrigada por toda a dedicação, ética e comprometimento que você tem pela nossa causa... Bjs!

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