quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Assaltos no Guarujá


   Hoje foi o primeiro dia de Miranda em sua nova escola. Reunião de uma hora, com pais e alunos, para apresentações, esclarecimentos. A escola municipal Catarina Salgado fica há algumas quadras de casa. Seguíamos conversando, ela sempre tão linda, animada, cheia de energia e coragem. Um garoto, cerca de 15 anos, magro, negro, de boné preto, blusa listada preta e vermelha, bermuda jeans e tênis, se aproximou de bicicleta e parou ao nosso lado: “Passa a bolsa!”. 
   Demorei alguns segundos para entender que era um assalto, mesmo instante em que meu estômago foi corroído pela gastrite nervosa. Tentei argumentar. Pedi para tirar os documentos. Mas não teve jeito. Ele puxou minha bolsa e apontou uma arma preta: “Mato sua filha!”. 
  Entreguei a bolsa, cheia de ressentimento e um pouco de esperança que os alunos da autoescola, aprendendo a dirigir na outra quadra, derrubassem a bicicleta. Não gritei nem "pega ladrão". Miranda chorou muito, me puxava para voltar para casa, não queria a direção da escola, a mesma do assaltante juvenil. Passava uma mulher com roupa de ginástica, suada, segurando uma garrafa de água, me viu tentando convencê-la e disse simpática: “A escolinha é legal, a mamãe volta depois”. Então expliquei que o choro era medo de um tiro. A mulher nos acompanhou e foi conversando com Miranda. Depois me disse que esses assaltos matinais costumam acontecer com mães e filhos a caminho das escolas. 
  Miranda ficou ao meu lado na sala de aula, durante a reunião, ao invés de ir brincar com os coleguinhas. Às vezes lembrava a cena, fazia bico e chorava baixinho: “Sabe mãe, acho que esse menino, quando era bebê, a mãe dele não cuidou direito”. Pode ser. Como explicar para uma menina com menos de 5 anos que um adolescente pode ameaçá-la para levar uma bolsa? Como fazer novamente o caminho para a escola? Esse foi apenas o primeiro dia! 
   Dei a notícia para a diretora da escola, que espalhou para a secretaria, também falei para os pais e mães na sala, a ideia é prevenção: não carregar bolsa, nada de documentos, cartões ou celulares e evitar ruas tranquilas e arborizadas às 8h30 da manhã, se puder andar em dupla, melhor. Ainda na sala de aula, uma funcionária entrou com uma carteira achada na rua, para perguntar se era minha. Não, era de outra vítima!
   Voltamos e Miranda não quis passar pelo mesmo lugar. Precisei chamar um chaveiro para abrir a porta, estou sem documento algum, sem celular e sem todos os contatos gravados nele e as fotos que não baixava desde maio. “Mas, puxa, que bom, o garoto não atirou - com a arma que até poderia ser de brinquedo quem arriscaria?”.
   Não por acaso isso me lembrou um ocorrido semana passada, também com a companheira Miranda. Esperávamos a linha 77, na quarta-feira, dia 29, às 13h, no mesmo bairro Jardim Virgínia, na praia da Enseada. Quando veio atrasado, o motorista do veículo de número 491, não só passou direto, como ainda ultrapassou o outro ônibus, que estava parado descarregando passageiros, num local totalmente proibido. Isso me irritou de um tanto, que quase estragou meu dia.
   No início da noite tive uma discussão saudável quando contava sobre os desmazelos públicos no Guarujá: o transporte é precário, poucos veículos, muito tempo de espera, ônibus cheios. Há uma UPA (Unidade de Pronto Atendimento) perto de casa, nova, com duas salas de pediatria lindas, pintadas, com ar-condicionado, cheia de bichinhos coloridos, mas sem pediatras há mais de 6 meses. Sim, as praias são lindas, mas muitas impróprias para o banho de mar. Não há opções de lazer e cultura. 
   Essa escola de Miranda me foi bem recomendada e gosto das salas divididas por cores, corredores com estantes cheias de livros e banquinhos almofadados, toda voltada para a educação infantil..Mas daqui para a frente como evitar o medo de passar no mesmo lugar deste assalto?
   Em certo momento começaram a reclamar da Prefeitura. Disse da próxima vez, se não houver em quem votar, que votem nulo, “porque eleger prefeito incompetente com voto protesto também é muito burro”, pensei, para não ganhar desafetos no primeiro dia.
   No fim, só restou a sensação antiga de que Guarujá é terra de ninguém, é feita para turista. Apesar de não haver comparação, acabo lembrando de Santos, porque está ao lado, separada por uma travessia de balsa ou barca. Guarujá é uma ilha, sendo literal que os moradores vivam ilhados.
   Santos não é perfeita, como nada é. Inclusive está piorando, com seus prédios altos e propensão a ter mais carro do que gente. Mas é feita para santista, apesar do turismo intenso. Sei que parece, mas não é bairrismo. Nasci em Santos, mas morei em muitas cidades – São Vicente, Praia Grande, Mongaguá, Ribeirão Preto, São Paulo, Boiçucanga/São Sebastião, Paraty, Rio de Janeiro. Sou  cidadã em qualquer cidade. Mesmo quando viajo chamo de minha casa o lugar onde estou, gosto de participar de tudo. Sei o que são boas, regulares e péssimas administrações públicas. E sim, tenho muito orgulho da cidade em que nasci, porque ela funciona, tem história, tem vida, tem peculiaridades. Quando moro longe, valorizo mais, quero sempre voltar, nem que seja a passeio.
   Na adolescência Guarujá era minha cidade dormitório, nadava e estudava em Santos. Era cidade fantasma o ano inteiro, nada de lazer, além de praia – daí a razão de tantos bons surfistas. Sempre havia muito assalto e estupro. Nas férias justo a praia, o único lazer, que preservávamos, era invadida, poluída, avacalhada, o mar cheio de prego, um monte de afogamentos de gente que bebe, nem sabe nadar e se mete a enfrentar ondas. Daí no verão havia show na praia, eventos e policiamento. Isso me incomodava muito.
   Parece que Guarujá piora a cada administração. No primeiro dia de aula, minha filha aprendeu que meninos carregam armas e podem matá-la. Na volta, pegamos a avenida movimentada, sem árvores. Quando voltou a falar do incidente, preocupada se poderia acontecer de novo, respondi que às vezes, sim. Lembrei de aprender artes marciais e comentei que talvez estivesse na hora dela entrar no judô. “Aí eu dava um golpe nele e esperava a polícia chegar, mamãe”, respondeu sorrindo, voltando a ser a destemida e corajosa Miranda de sempre.
   Talvez ela supere isso mais rápido do que eu, que, sem forçar muito, lembro de ter a mesma bicicleta roubada duas vezes, dois carros, várias bolsas e celulares levados, tudo no Guarujá, no decorrer de décadas. E sempre agradecendo “à sorte” por não ter levado tiros, mesmo jamais tendo reagido. Essas lembranças me fizeram tão mal que até ouvi Nirvana. Hoje minha filha poderia ter levado um tiro. O que desta impressão ficará marcada na mente? Qual a sensação dela em ter uma arma apontada, numa manhã ensolarada, a caminho do primeiro dia na escola?
    Mais uma vez estou sem contatos e sem documentos, graças a mais um assalto sofrido no Guarujá. Outra vez passando por toda a burocracia de fazer B.O. em delegacia e dar entrada em documentação. Novamente decidindo entre retomar contatos ou eliminá-los de vez. Acho que a vida já me mostrou que esse não é o meu lugar. Talvez seja o destino dizendo para eu recomeçar no meu looping infinito. Ou é apenas a ação da Lei de Murphy, única que funciona comigo.

2 comentários:

  1. Que triste isso. Eu me lembro bem do Guarujá. Sua redação me faz ficar grato de ter mudado do Brasil ha 30 anos atras, aos 17 anos de idade. Que tristeza ler sobre o susto que sua filhinha passou com o assalto e que alivio que o vagabundo não atirou em você ou ela!! Me surpreende que, com tantos crimes violentos no Brasil, que o povo não se reúne em massa para mudar a lei de porte-de-armas. Aqui nos EUA quase todo mundo anda armado e carregar arma no carro nem requer licença ou treino! No Brasil eu escapei de uma gangue de bandidos que queriam me matar (Eu tinha 13 anos!) Nunca corri tao rápido. O Bolt ficaria com inveja Mas correr rápido salvou minha vida. Inda bem que estava em forma! Adoro sua maneira de escrever e seu blog. Boa sorte em tudo para você, seu esposo e sua família. No Facebook sou mario33. Com certeza, eu acho que para o Brasil não voltarei nunca mais. Daqui para a Itália ou outro lugar. Abraços e tudo de bom. Continue escrevendo, talvez um livro?

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    1. Obrigada, penso sim em fazer um livro deste blog, já tive até convite, mas agora estou às voltas com o lançamento da biografia Djalma Santos - Do Porão ao Palácio de Buckinghan, de minha autoria e Flavio Prato e Norian Segatto. Quero muito ir embora deste País também... bjs

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