sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Morte Súbita

    Ano passado, não lembro quando, minha filha mais velha me perguntou qual livro eu estava lendo. “Nenhum”. Daí perguntou qual foi o último que eu tinha lido. “Não lembro”. Devo ter lido tanto na vida que chegou a hora em que só queria escrever. Ela me disse que lia cinco livros por mês. Só nas férias leu todos do Harry Potter. Lembrei de mim com a mesma idade, era também uma devoradora de livros, sócia da biblioteca municipal, pegava dois por semana, fora as trocas de livros entre os vários amigos que também adoravam ler.
    Mas tomei uma “bronca” virtual da minha filha (o único contato que temos é virtual), porque deveria ler mais, porque literatura é vida.* Assim como eu, na minha infância e adolescência, Dora cresce filha única, numa casa de adultos, sem crianças e busca na literatura uma forma de libertação e conhecimento da vida. Voltei a ler mais livros e menos matérias jornalísticas a partir daí. 
   Comprei Morte Súbita, da J.K. Howling, para dar de presente de aniversário para Dora. Não sei quando poderei entregar, não há data nenhuma para encontro nenhum. Não quero mandar pelo correio. Isso é tão parente distante! E li o livro, já que é para adulto e queria saber se poderia ser lido ou não por uma garota de 12 anos. São mais de 500 páginas e só não li em dois dias porque tenho muito a fazer em 24 horas, mas cheguei a dormir menos de 4 horas por noite graças à narrativa envolvente, aos personagens consistentes e a essa escritora tão, mas tão inteligente e sensível que não posso ser nada menos que sua fã.
  Morte Súbita é daquelas obras que te faz pensar no dia seguinte e no outro. É uma ficção cheia de realidade. Todos aqueles personagens são tão verdadeiros que é possível identificar-se nos pensamentos de cada um, todo mundo tem seu lado obscuro e sombrio, alguns mais ressaltados, outros conseguem esconder melhor. Minha parte sombria eu não posso esconder nem se quisesse (mas não quero), já foi exposta de todas as formas. Perder a guarda da minha filha foi resultado de um processo judicial, iniciado pela outra parte, após eu ter passado por uma depressão profunda (culpa minha, sempre). Essa depressão, melancolia ou tristeza nunca poderão ser esquecidas. O vazio deixado por essa ausência dilacerante da filha me faz lembrar todos os dias da depressão que eu tive. E que, por conta desse vazio, sempre me ronda. 
   Como eu queria poder ajudar todos os deprimidos do mundo, que além do sofrimento latente e inexplicável, ainda suportam os preconceitos alheios, “é falta de um tanque de roupa suja para lavar”, “falta de problemas na vida”. Ouvi muito isso, de pessoas muito próximas, algumas mais autênticas me diziam na cara, outras falavam pelas costas, mas nunca odiei essas pessoas. Ignorância não deve causar ódio e sim compaixão. 
    E esse livro mostra o quanto a humanidade pode ser cruel e hipócrita. Como é difícil passar incólume pela adolescência e como os traumas da infância permanecem por toda a vida. Como é fácil destruir a autoestima de alguém vulnerável e jovem. Eu nem sou tão vulnerável e muito menos uma jovem, mesmo assim sinto-me uma pessoa abaixo da linha do mérito. 
  Esses dias são particularmente difíceis. Minhas filhas nasceram 9 e 16 de fevereiro e esse será o quarto aniversário que não passam juntas. Como disse a psicóloga forense, “perderam o vínculo de irmãs”. Data de aniversário de filhos deveria ser especial e feliz. Para mim não. 
   Em Morte Súbita há mãe viciada em heroína e mesmo assim ela tem a guarda dos filhos, passa por aquela via sacra de assistentes sociais, psicólogas... mas é uma viciada em heroína, que esquece de alimentar e banhar o filho de 3 anos. Tem também o esporte resgatando a cidadania, devolvendo a autoestima de garotas que sofrem bullying, que tem mãe viciada em heroína e cuida do irmão pequeno.  Tem muita história pesada no livro e agora não sei se devo dar para Dora ler. Não por mim, que li Eu, Christiane F., 13 anos, drogada e prostituída aos 12, mas pelo o que a família Golfeto (os guardiões da minha filha) pode pensar. Podem até levar o livro e colocar no processo, para mostrar ao juiz a pessoa inadequada que sou. 
   Agora o mais louco é que estou escrevendo um romance policial, nele um juiz é assassinado no primeiro parágrafo. Sua morte muda o rumo de várias histórias e por meio dos vivos fica-se sabendo sobre o morto. Em Morte Súbita acontece a mesma coisa! Obviamente J.K. Howling é mais brilhante e infinitamente mais talentosa do que eu. E, por sorte, já mostrei os dois primeiros capítulos para três pessoas de extrema confiança, críticas e sagazes. Só para saber se estava no caminho certo... 
   Morte Súbita me fez pensar muito na morte e na vida besta de tanta gente. Minha vida mesmo anda muito besta. Fiquei com tanto medo de ter uma arma apontada novamente para minha filha* que nem quero mais sair de casa. Ainda bem que o incrível mundo da internet permite mandar os textos de qualquer lugar. Mas ainda gosto de me reunir com pessoas para discutir projetos. De todas as mortes, a súbita é a menos trágica.

* Escrevi sobre esse assalto num dos últimos posts

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Mais Um Ano Sem Você


    Em novembro minha advogada fez uma série de pedidos para o juiz Do Processo*. O único aprovado foi que eu pudesse ver minha filha antes do Natal. Como ateia não ligo para Natal, a primeira árvore montei depois que me tornei mãe, já que as crianças gostam de árvores, enfeites, festas e são muito novas para entender o consumismo frenético da data. Mas acho lindo as pessoas se tornarem mais generosas e simpáticas nessa época do ano. Algumas só nessa época. Talvez esse juiz seja cristão e ficou com pena da criança. Mas também pedi 10 dias de férias. Talvez a advogada não tenha especificado que era para 2014. As férias acabaram. Se ao menos o pedido fosse negado, eu poderia recorrer, mas o juiz, a pessoa que deve decidir, não decidiu! E ficamos a mercê desse magistrado tosco, lento e corrompido. 
   Passei 10 dias em Búzios (RJ), com amigos queridos, com Alice e Raiz, amigas da minha filha. Búzios é sempre lindo, sol todos os dias, mar gelado, vento, lugar perfeito para passar o verão. O restante do mês fiquei no Guarujá, porque moro onde as pessoas pagam para passar férias. Minha filha? Passou seus dois meses férias em Ribeirão Preto, no calor infernal, como ela mesma diz. Sem viagem, sem praia, sem mãe
   Hoje Dora completa 12 anos. Amanhã completará 3 anos que minha filha foi levada para a casa dos avós e nunca mais dei um boa noite, nunca mais almoçamos, jantamos, tomamos sorvete, passeamos juntas. Isso torna esses dias tão tristes, queria que não existissem calendários, nem datas.  Continuo não sabendo nada sobre suas alergias que a obrigam tomar vacinas semanais “para sempre”, sobre sua escola, seu ballet, não conheço nenhum de seus novos amigos, nada de seu cotidiano. Uma data que seria para comemorar, mas só me dá tristeza. Muito triste lembrar do seu nascimento, dos planos, da sua infância roubada e como a “justiça” nos separou. 
   Já passou tempo demais para ficar esperando decisão de juiz que não decide. O judiciário é uma fábrica de desesperança. As dezenas de mães na mesma situação dizem que agora só esperam a justiça divina. Como prefiro não acreditar em deus (se acreditasse o detestaria), só espero o tempo passar, assim minha filha completa logo 18 anos e deixamos de ser apenas números de processos e voltamos a ser gente. Talvez a infância desses juízes tenha sido muito ruim ou tão distante que não lembram como as férias de verão eram esperadas, desejadas, queridas. 
   Nesse último mês mais três mães me escreveram porque estão com medo de perder a guarda, uma delas “já” está nas perícias e me perguntou como agir. Sinceramente, acho que devem fazer o oposto do que eu fiz, porque nada do que eu faço funciona. Outro dia dei dicas para uma mãe de como procrastinar o processo e manter seu filho em sua casa. Dei todos os passos e estratégias de Jonas Golfeto, a outra parte, aquele que, se tinha alguma razão, já perdeu faz tempo. Expliquei como usar a morosidade da Justiça a seu favor. Daí um desses pais machistas e “sofredores” desses grupos de Alienação Parental, com 99% de homens, que acham todas as mães um monstro, me detonou, disse que tirou prints das minhas dicas de alienação e iria mandar para o avô José Hércules Golfeto, o psiquiatra infantil que não permite que a neta veja e conviva com a mãe, mas insiste em dizer que não manda nada, o filho que manda e toda aquela ladainha para acabar com a paciência e sanidade das pessoas comuns. 
   Enquanto José Hércules Golfeto não conseguir judicialmente tirar meu blog do ar, quero muito escrever aqui o nome dele, para que os pais de seus pequenos pacientes fiquem alertas sobre em que mãos confiam a saúde mental de seus filhos. Minha intenção nunca foi levá-los à falência, afinal são os avós os responsáveis financeiros por minha filha, pagam escola, balé, alimentação e vestuário. Mas também pagam os advogados.     Infelizmente são pessoas que preferem perder tempo e dinheiro com o judiciário do que aproveitar a vida, tão curta e tão frágil, com algo útil e produtivo. Será o quarto ano distante da minha filha. No começo era uma dor de morte, de luto. Agora, como todo luto, existe uma saudade do passado que era bom, mas aprendemos a seguir vivendo sem a pessoa que amamos. 
   Queria falar aqui de outra mãe, Nina Guedes, que também participava desses grupos virtuais de pais (homens) que querem a guarda ou o direito de ver seus filhos. Nina contestou um comentário machista, que dizia ser ela uma exceção. Logo Nina revidou dizendo que em seus 4 anos de fóruns conheceu muitas mães na mesma situação. Também dei lá o meu comentário porque tenho essa mania de me manifestar. Disse que eu também sofria do mesmo mal e conhecia mais umas dezenas de mães. A verdade é que todos, absolutamente todos os homens que pegam a guarda de filhos os deixam aos cuidados de terceiras (avós, tias, madrastas, babás). O pai que pede guarda na Justiça é mal intencionado. 
    Um exemplo é Jonas Golfeto, que sempre morou em São Paulo, mas pegou a filha e levou para morar com os avós. Sua intenção era que eu nunca mais visse Dora, já que entrou com uma ação de “destituição do pátrio poder”, pedindo para tirar meu nome e dos meus pais da certidão de nascimento e o meu sobrenome do nome dela. Não conseguiu isso, mas conseguiu nos afastar. 
    Por que será que ele mudou de São Paulo já que vivia lá há mais de 15 anos? Porque jamais daria conta de cuidar de uma menina sozinho, tão simples. Tem quase 40 anos e não consegue cuidar nem de si. O pai que consegue guarda judicialmente é sempre por vingança e age de má fé, com mentiras, já que pode dizer qualquer coisa, já que a outra parte que deve provar o contrário, nisso leva-se anos. O pai que fica com a guarda porque a mãe surtou, é drogada ou está impossibilitada, faz de tudo para a mãe melhorar e poder cuidar dos filhos. Eu sei, eu conheço homens assim. 
   O judiciário que alimenta o sentimento de vingança e ódio, só faz crescer o tamanho da amargura. Na próxima semana Miranda completará 5 anos. Só no primeiro aniversário teve a irmã do lado. E eu, aquela garota que nunca quis ter filhos, quando decidi ter a primeira, porque senti um amor incontrolável dentro de mim, sabia que teria a segunda, porque não gosto de ser filha única e não queria isso para Dorinha. Agora me pego com outra filha única, que exige muito mais atenção, que não tem outra criança para brincar em casa ou assistir desenhos. Envelheço de uma forma triste e solitária. Novamente sigo no meu looping infinito...

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Perto da Perfeição

   Quando criança era tão sapeca, que logo Paula virou Pauleca. Não lembro exatamente como nos conhecemos, mas certamente foi em alguma arquibancada de piscina, lá no início dos 80. Provavelmente a menina linda, de sorriso encantador, olhos verdes e cabelos loiros (também muito esverdeados), que nadava no Internacional de Regatas, deve ter se aproximado da nadadora menor (um ano em idade, uma dezena em centímetros), para fazer um novo amigo. Eu tinha 11 anos e começava a treinar no Vasco e achava a Pauleca o máximo da simpatia e beleza. 
    Na época do colegial, ela estudava no terceiro ano do Colégio Objetivo de Santos e eu no segundo. Um grande amigo meu, ator, da classe dela, “descobriu” que era nadadora e me conhecia, veio dizer, com suspiros, que estava apaixonado. “Você e a torcida do Santos, meu querido!”. Acho que não existia um garoto que recusasse um pedido seu. Embora ela não fosse de pedir, era de oferecer aos outros: ajuda física, mental, emocional, com palavras, presença, simpatia. E não havia amiga que não a admirasse e tivesse orgulho por tê-la ao lado. 
    Mas quem conquistou seu coração e mente irremediavelmente, foi o belo Cristiano, de sorriso largo e jeito tranquilo. Pauleca seguiu estudando Jornalismo e perdemos contato por alguns anos. Nos reencontramos na TV Tribuna, eu repórter, ela apresentadora. Paula Quagliato tornara-se uma profissional admirável! Casada com Cris, era mãe de Fred, 7 meses. Nunca se atrasava, chegava com pauta, ficava muito ligada em tudo e ainda participava da produção. Sempre bem-humorada e com cara de quem acabou de sair do banho, mesmo com olheiras típicas das mães de bebês. Se pouco dormia, ninguém percebia ou a maquiagem escondia. 
    No jornalismo é como sempre foi na vida: perspicaz, inteligente e cheia de credibilidade. Uma vez o Cris apareceu na emissora, para dar um oi, estava com saudade da esposa. Achei lindo! * Depois de mais uns anos sem contato, o mundo da internet me trouxe Pauleca de volta, mesmo que virtualmente. Numa tarde quente, eu na estrada, voltando de Ribeirão Preto, com muitas lágrimas nos olhos, vi uma mensagem dela. Então conversamos por duas horas. Eu estava arrasada, mas ela, com sua sensibilidade que só aumenta, com sua escrita de escritora, me falou de amor, de resistência e redenção. De como as poucas horas com Dora, mesmo fechada e monitorada, eram nossa redenção. Minhas lágrimas foram secando e em pouco tempo já sorria com seu senso de humor, meio parecido com o meu. 
   Ano passado também me ajudou, com sua peculiar popularidade, a arrebanhar doadores de sangue para minha prima. Fez mais do que “compartilhar” o pedido, fez um texto pessoal, me ajudou a escolher a foto. Afinal, agora pratica seu novo talento, o da fotografia. Capta sutilezas da cidade de Santos, mas poderiam ser fotos de qualquer lugar. Ela encontra vida nas rachaduras de prédios decadentes, suas flores tem as cores da primavera o ano inteiro, flagra momentos cotidianos cheios de poesia. Impressionante como essa mulher é tão multitarefas e ainda se concentra em achar beleza nos detalhes dos outros. 
  Há alguns meses esse ser brilhante passou pela maior dor e perda de sua vida. Cris se foi de forma inesperada. Quando eu soube estava em Ribeirão Preto. Não pude ir dar um abraço apertado na amiga querida, mãe de dois adolescentes lindos**. O mesmo aconteceu na missa de sétimo dia, estava eu lá em Ribeirão. E de um mês. E há uma semana fui na missa de um ano da minha amiga inesquecível, Claudia Albuquerque Figueiredo Schiari. Quem me avisou sobre a missa foi Raquel, a filha de 12 anos. Miranda fez questão de ir comigo. 
   Lá, enquanto tentava explicar para Miranda que não podia explicar nada sobre vida após a morte, pensava no último ano, sem Cláudia. A dor da saudade física diminui, a mente acostuma com a nova realidade. O cérebro é mesmo fantástico, guarda só as lembranças boas. Maravilhoso que foram tantas (mas sempre poderiam ser mais). E no final, o abraço em Fernando, o pai que segue com quatro filhos adolescentes e lindos, não foi cheio de lágrimas, como há um ano, mas com um sorriso. Ele não lamentou, agradeceu: “Que bom que você veio!” 
   E pela semelhança dos laços, mais uma vez pensei em Pauleca, nessas separações impostas pelo destino e em como é possível conseguir superar. Não é apenas superação, é mais do que isso, é aceitação. Mas penso no primeiro ano de tudo, em como é difícil: primeiro Natal, Ano Novo, férias de verão... como é doído não poder mais abraçar quem amamos. 
   Não consegui explicar para Miranda o que acontece com os que se vão. Mas os que ficam seguem com todas as impressões dos que foram, é permanente a marca, segue sempre dentro, num estado puro de amor. Expliquei que não é a missa ou o padre que faz lembrar quem amamos e nos separamos. Mas é muito bom abraçar os amigos, o marido, os filhos, como um conforto. A missa é para o abraço. 
   Esse abraço de conforto ainda não dei em  Pauleca. Mas sei o quanto ela se sente abraçada. A perfeição não existe, mas algumas pessoas chegam bem perto. 

* Paula trabalhava tanto e ainda tinha compromissos na faculdade e um bebê em casa, então o marido realmente a via pouco. Achei lindo o gesto de carinho e porque foi um toque sutil para trabalhar menos.

** O pequeno Fred hoje é um rapaz muito parecido com o ator James Franco (que adoro e acho lindo). A semelhança é tanta que Pauleca não conseguiu ver 127 Dias inteiro.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Assaltos no Guarujá


   Hoje foi o primeiro dia de Miranda em sua nova escola. Reunião de uma hora, com pais e alunos, para apresentações, esclarecimentos. A escola municipal Catarina Salgado fica há algumas quadras de casa. Seguíamos conversando, ela sempre tão linda, animada, cheia de energia e coragem. Um garoto, cerca de 15 anos, magro, negro, de boné preto, blusa listada preta e vermelha, bermuda jeans e tênis, se aproximou de bicicleta e parou ao nosso lado: “Passa a bolsa!”. 
   Demorei alguns segundos para entender que era um assalto, mesmo instante em que meu estômago foi corroído pela gastrite nervosa. Tentei argumentar. Pedi para tirar os documentos. Mas não teve jeito. Ele puxou minha bolsa e apontou uma arma preta: “Mato sua filha!”. 
  Entreguei a bolsa, cheia de ressentimento e um pouco de esperança que os alunos da autoescola, aprendendo a dirigir na outra quadra, derrubassem a bicicleta. Não gritei nem "pega ladrão". Miranda chorou muito, me puxava para voltar para casa, não queria a direção da escola, a mesma do assaltante juvenil. Passava uma mulher com roupa de ginástica, suada, segurando uma garrafa de água, me viu tentando convencê-la e disse simpática: “A escolinha é legal, a mamãe volta depois”. Então expliquei que o choro era medo de um tiro. A mulher nos acompanhou e foi conversando com Miranda. Depois me disse que esses assaltos matinais costumam acontecer com mães e filhos a caminho das escolas. 
  Miranda ficou ao meu lado na sala de aula, durante a reunião, ao invés de ir brincar com os coleguinhas. Às vezes lembrava a cena, fazia bico e chorava baixinho: “Sabe mãe, acho que esse menino, quando era bebê, a mãe dele não cuidou direito”. Pode ser. Como explicar para uma menina com menos de 5 anos que um adolescente pode ameaçá-la para levar uma bolsa? Como fazer novamente o caminho para a escola? Esse foi apenas o primeiro dia! 
   Dei a notícia para a diretora da escola, que espalhou para a secretaria, também falei para os pais e mães na sala, a ideia é prevenção: não carregar bolsa, nada de documentos, cartões ou celulares e evitar ruas tranquilas e arborizadas às 8h30 da manhã, se puder andar em dupla, melhor. Ainda na sala de aula, uma funcionária entrou com uma carteira achada na rua, para perguntar se era minha. Não, era de outra vítima!
   Voltamos e Miranda não quis passar pelo mesmo lugar. Precisei chamar um chaveiro para abrir a porta, estou sem documento algum, sem celular e sem todos os contatos gravados nele e as fotos que não baixava desde maio. “Mas, puxa, que bom, o garoto não atirou - com a arma que até poderia ser de brinquedo quem arriscaria?”.
   Não por acaso isso me lembrou um ocorrido semana passada, também com a companheira Miranda. Esperávamos a linha 77, na quarta-feira, dia 29, às 13h, no mesmo bairro Jardim Virgínia, na praia da Enseada. Quando veio atrasado, o motorista do veículo de número 491, não só passou direto, como ainda ultrapassou o outro ônibus, que estava parado descarregando passageiros, num local totalmente proibido. Isso me irritou de um tanto, que quase estragou meu dia.
   No início da noite tive uma discussão saudável quando contava sobre os desmazelos públicos no Guarujá: o transporte é precário, poucos veículos, muito tempo de espera, ônibus cheios. Há uma UPA (Unidade de Pronto Atendimento) perto de casa, nova, com duas salas de pediatria lindas, pintadas, com ar-condicionado, cheia de bichinhos coloridos, mas sem pediatras há mais de 6 meses. Sim, as praias são lindas, mas muitas impróprias para o banho de mar. Não há opções de lazer e cultura. 
   Essa escola de Miranda me foi bem recomendada e gosto das salas divididas por cores, corredores com estantes cheias de livros e banquinhos almofadados, toda voltada para a educação infantil..Mas daqui para a frente como evitar o medo de passar no mesmo lugar deste assalto?
   Em certo momento começaram a reclamar da Prefeitura. Disse da próxima vez, se não houver em quem votar, que votem nulo, “porque eleger prefeito incompetente com voto protesto também é muito burro”, pensei, para não ganhar desafetos no primeiro dia.
   No fim, só restou a sensação antiga de que Guarujá é terra de ninguém, é feita para turista. Apesar de não haver comparação, acabo lembrando de Santos, porque está ao lado, separada por uma travessia de balsa ou barca. Guarujá é uma ilha, sendo literal que os moradores vivam ilhados.
   Santos não é perfeita, como nada é. Inclusive está piorando, com seus prédios altos e propensão a ter mais carro do que gente. Mas é feita para santista, apesar do turismo intenso. Sei que parece, mas não é bairrismo. Nasci em Santos, mas morei em muitas cidades – São Vicente, Praia Grande, Mongaguá, Ribeirão Preto, São Paulo, Boiçucanga/São Sebastião, Paraty, Rio de Janeiro. Sou  cidadã em qualquer cidade. Mesmo quando viajo chamo de minha casa o lugar onde estou, gosto de participar de tudo. Sei o que são boas, regulares e péssimas administrações públicas. E sim, tenho muito orgulho da cidade em que nasci, porque ela funciona, tem história, tem vida, tem peculiaridades. Quando moro longe, valorizo mais, quero sempre voltar, nem que seja a passeio.
   Na adolescência Guarujá era minha cidade dormitório, nadava e estudava em Santos. Era cidade fantasma o ano inteiro, nada de lazer, além de praia – daí a razão de tantos bons surfistas. Sempre havia muito assalto e estupro. Nas férias justo a praia, o único lazer, que preservávamos, era invadida, poluída, avacalhada, o mar cheio de prego, um monte de afogamentos de gente que bebe, nem sabe nadar e se mete a enfrentar ondas. Daí no verão havia show na praia, eventos e policiamento. Isso me incomodava muito.
   Parece que Guarujá piora a cada administração. No primeiro dia de aula, minha filha aprendeu que meninos carregam armas e podem matá-la. Na volta, pegamos a avenida movimentada, sem árvores. Quando voltou a falar do incidente, preocupada se poderia acontecer de novo, respondi que às vezes, sim. Lembrei de aprender artes marciais e comentei que talvez estivesse na hora dela entrar no judô. “Aí eu dava um golpe nele e esperava a polícia chegar, mamãe”, respondeu sorrindo, voltando a ser a destemida e corajosa Miranda de sempre.
   Talvez ela supere isso mais rápido do que eu, que, sem forçar muito, lembro de ter a mesma bicicleta roubada duas vezes, dois carros, várias bolsas e celulares levados, tudo no Guarujá, no decorrer de décadas. E sempre agradecendo “à sorte” por não ter levado tiros, mesmo jamais tendo reagido. Essas lembranças me fizeram tão mal que até ouvi Nirvana. Hoje minha filha poderia ter levado um tiro. O que desta impressão ficará marcada na mente? Qual a sensação dela em ter uma arma apontada, numa manhã ensolarada, a caminho do primeiro dia na escola?
    Mais uma vez estou sem contatos e sem documentos, graças a mais um assalto sofrido no Guarujá. Outra vez passando por toda a burocracia de fazer B.O. em delegacia e dar entrada em documentação. Novamente decidindo entre retomar contatos ou eliminá-los de vez. Acho que a vida já me mostrou que esse não é o meu lugar. Talvez seja o destino dizendo para eu recomeçar no meu looping infinito. Ou é apenas a ação da Lei de Murphy, única que funciona comigo.