quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Seremos Todos Individualistas?



  Queria muito escolher algo para me dedicar completamente. Acredito que a repetição, a busca, o aperfeiçoamento levam perto da perfeição, do inteiro. Mas são tantos os interesses e possibilidades, que me perco e acabo desconcentrando, achando sempre algo que pode me mover mais. Nunca soube se é melhor conhecer algo profundamente ou tudo, superficialmente. A segunda opção sempre me pareceu mais atraente, ampla e útil. Ainda tenho dúvidas e a dúvida é péssima conselheira. Mas é impossível não ter dúvidas no mundo de incertezas e escolhas que é a vida. Penso que seja um efeito, um mal (ou bem) do século.
   Dia desses conversava com o amigo Gustavo Lidtke sobre a rapidez com que tudo acontece, inclusive os relacionamentos, as paixões. Nos tempos de internet está se tornando comum começar e terminar algo por mensagem. Falta muito o “olhos nos olhos”, o abraço derradeiro de despedida, uma explicação, se é que isso existe, para o que era bom e não é mais. Fica mais fácil e pode doer menos não ter contato nenhum, não ouvir nem a voz do fim, como se o fim não existisse. Vai ver não existe.
   Em outra conversa, com outro amigo, daqueles que não dormem e te ligam porque sabe que muitas vezes você também não dorme, tomei uma bronca e ouvi duas horas de verdades só porque disse que voltei 10 casas no Jogo do Amor. “Como assim jogo? Você me decepciona tentando ser tão racional, quando sei que você não é. Não é possível que ainda não tenha entendido que não temos controle sobre tudo, que o orgulho não serve para nada, a não ser afastar quem realmente importa”.
   Voltar a nadar foi uma das melhores decisões deste ano. Talvez a única certeira. Porque enquanto nadamos, esvaziamos a mente, para depois reabastecê-la, livre de lixos existenciais. Para retornar tive alguns empurrões, de pessoas que encontrava por acaso, e incentivo de outras, que via sempre. É como dizem: “você precisa de motivação para começar, mas só o hábito te faz continuar”. No começo dói. Você pensa que nunca mais será o mesmo, não conseguirá fazer como fazia antes. A verdade é que não conseguirá mesmo. Nada será como antes, nem nadar. Os músculos demoram mais para ficar fortes, a resistência pode não ser igual, mas estar lá todos os dias (ou todos os dias possíveis) traz o progresso gradativo. E o mundo está tão imediatista que poucos tem a paciência da melhora gradual. Eu mesma sou muito imediatista, mas as bordoadas judiciais que tenho tomado, me fazem tentar pensar a longa distância. Posso ter tudo de novo. Posso fazer tudo outra vez. A única coisa que não quero nunca mais ter na vida é ilusão. Nem iludir. Com o tempo aprendemos que aceitar dói menos. Que quando mais nada pode ser feito e o desespero parece tomar conta do coração e da mente, ainda posso mergulhar e nadar e chorar. Encher os oclinhos de lágrimas sem que ninguém perceba. As lágrimas vão para a água e tudo flui, liquidamente. Liquidando o sofrimento.
    Eu já queria nadar de novo, principalmente para dormir melhor. Um dia encontrei a Nana (Luciana Uechi Martins), com quem nadei no Vasco da Gama, nos idos dos anos 1980. Agora ela é remadora, mas também nada e me disse para ir na Unimes/Fefis. Eu já tinha nadado lá há alguns anos, Dora fez nado sincronizado lá, Miranda deu suas primeiras braçadas lá. Fui conversar com um professor da Equipe de Competições, Matheus Nascimento, expliquei que sou uma nadadora/competidora, que não nadava há mais de três anos, que precisaria de paciência e que tentaria acompanhar os treinos. Fui recebida de braços (e quantos braços) abertos por toda a equipe e professores. Para completar, o coordenador é Fabrício Madureira, com quem dividi muitos treinos, no mesmo Vasco da Gama de Santos. Um dos nossos passatempos favoritos é lembrar como era dura a vida dos nadadores dos anos 80, quando as piscinas eram geladas e os treinos nunca eram inferiores a 8km por dia. E ai dos que reclamassem! Fabrício é mesmo um mestre, dia desses me disse, que quando está com problemas que considera muito grandes, vai para a emergência de algum hospital, fica lá por meia hora, assim percebe que seu problema não é tão grande assim. Que não é nada. Achei isso genial!
    Hoje é tudo mais fácil, mesmo assim parece difícil treinar 6 dias por semana. Quando me desanimo por algum motivo cotidiano, penso no pessoal que treina para triatlon e IronMan. Na equipe temos uma IronMãe, Rose Amorim, que treina 7 vezes por semana (entre corrida, ciclismo, natação, pilates e musculação), tem dois filhos, trabalha e nunca deixa de treinar, em diferentes períodos do dia. Nas conversas de vestiário que tivemos só penso como alguém é capaz de fazer seu tempo valer tanto. Eu sempre perguntando tudo, com essa minha vontade incontrolável de conhecer as pessoas, fico cada vez mais admirada. Ela sempre tranquila, com endorfina exalando por todos os poros, me mostra seus dedos dos pés machucados, suas unhas perdidas.
    No final da última competição, eu, absolutamente cansada, após nadar quatro provas quase simultaneamente, já estava planejando a viagem para a próxima (que acontecerá em Ribeirão Preto, 19 e 20 de setembro) e comentei com a Rose, no vestiário, sobre esse “bichinho da competição” que morde a gente. Então ela me disse que no seu último Iron Man, quando corria, com mais de 9 horas de prova, pensava: “Por que eu faço isso? O que estou fazendo aqui?”, tamanho era seu estado de fadiga e exaustão. Mas ao cruzar a linha de chegada, com suor por todo o corpo e sorriso indescritível no rosto, só queria saber quando seria o próximo.
   Em outro papo de vestiário, com a Ângela Couto, uma nadadora pequena de tamanho, mas gigante de performance, fiquei sabendo que fizeram uma pesquisa com nadadores e que chegaram a conclusão de que somos individualistas. Que esse negócio de ficar horas a fio olhando azulejos, sem falar com ninguém, pensando nos próprios movimentos e nos resultados, nos faz individualistas. Discordamos, porque outro fato é que os melhores resultados individuais, geralmente são dados em revezamentos, diga-se de passagem, a prova mais emocionante de uma competição. Ou talvez sejamos individualistas, já que é um conceito de afirmação e liberdade do indivíduo, diante de um grupo, sociedade ou Estado. Desde o Renascimento apoia-se a competição, que o homem pode tudo, se tiver vontade, talento e capacidade de ação individual. Talvez sejamos todos individualistas e a natação tenha nos preparado para esse mundo impessoal em que vivemos. Mas não vejo em qualquer grupo palavras como “só falta um”, “vamos lá”, “é pra acabar”, “amanhã tem mais”, “parabéns pelo ótimo treino”. Não vejo em qualquer pessoa o interesse genuíno pelo progresso do outro.

   O que move o atleta? Talvez seja o amor. O amor que acredito, que é o amor de desejo, não de necessidade. A atividade física é necessária para a saúde. Mas o treino de atleta não é. Ele ultrapassa o necessário. É uma vontade, um desejo de ser, de estar, de completar, de superar. O amor que sinto é o desejo de estar pelo prazer da companhia, porque me faz feliz, sem condições, sem exigir nada, apenas quero estar lá. E se for para construir algo junto, que seja por vontade e não necessidade. É um compromisso que queremos ter, mesmo abdicando de muitas coisas, não nos sentimos divididos ou incompletos. É uma escolha, é uma renúncia. É o amor que move cada braçada, passo ou pedalada.

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