terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Aqui Dentro


    Cheguei 20 minutos adiantada, logo eu que costumo me atrasar. Tomei um café, enquanto lia sobre várias coisas, aleatoriamente, tentando mudar o foco. Pensava que já devíamos ter nos encontrado antes, tantas as coincidências, lugares e pessoas comuns. Tentava despertar para outras imagens, outros assuntos, mas era ele, o meu interesse. “Deve ser fumante!”, desejava, conscientemente, por ser uma forma de afastar qualquer possibilidade de beijo.
    Quando finalmente me concentrei numa matéria de cultura, percebo uma pessoa postada ao meu lado. Era ele e nem o vi chegar. Nenhum vestígio de fumaça. Deu até para sentir o hálito doce quando me deu um abraço. Os lugares e as pessoas ficaram ainda mais comuns. Já nem sabia mais quais eram as minhas histórias ou quais eram as dele. E fui tão ingênua que dei minha data de nascimento assim, de supetão, com horário e tudo. Sabia do meu mapa astral antes de me conhecer. Parecia saber bastante sobre mim. Tudo que eu queria esconder percebia só de olhar. E talvez por isso eu falasse sem parar, tentando ocupar os silêncios carregados de poesia.
    Há algum tempo fujo de romantismo. O amor romântico e idealizado nos decepciona com ilusões criadas por nós mesmos. Por isso não esperava, nem idealizava mais nada, com ninguém. Não neste momento, neste período, nesta fase, neste ano, nesta vida. Estava sempre evitando o novo, o desconhecido, o inédito. Mas era um novo antigo, como se fosse um reencontro, um desses chavões “parece que te conheço há tanto tempo”. Pegou minhas mãos, que costumam ser frias, e estavam suadas. Até ele estranhou, como se soubesse sobre minha pressão baixa. Isso não era normal e eu não entendia o que estava acontecendo. Me sentia bem, mas meu corpo reagia estranho.
    A noite passou tão rápida e não queria me despedir, não estava preparada para o fim de nada. Minha incerteza precisava congelar aquele momento, até eu decidir dar boa noite ou dizer continua comigo. Nem lembro como foi, se vacilei no convite, se ele queria mesmo seguir comigo, apesar da madrugada que invadia a noite. Sei que fomos, foi o suficiente .
   Estávamos numa sacada, cheia de vasos com plantas, numa noite fresca do fim da primavera. Não havia palavra que bastasse por minha parte. As ouvidas e as faladas, também as escritas. Tomava alguns goles de vinho branco para continuar falando e aguçar os ouvidos. Queria também ouvi-lo, mas evitava tocá-lo. Evitava também o silêncio e os olhos nos olhos. Em algum instante ficamos tão próximos, que nada impediu nossos lábios de se juntarem. A primeira vez que o beijei foi por muito tempo. De um jeito familiar e prolongado. Na segunda foi mais longo ainda o mesmo beijo, cheio de doçura e desejo, como se aquele cheiro sempre estivesse dentro de mim. Na terceira noite de tantos beijos me habituei de uma forma a só ficar beijando-o, na esperança de que ele também não pudesse mais viver sem aquele beijo.
     Nos dias que seguiram me vi tomando menos café, comendo mais e pensando menos. Tentei ser mais intuitiva. Mas continuei não querendo o amor romântico e idealizado. Estou sempre tentando encontrar impedimentos para concretizar qualquer sonho, para não ter desilusão. Quando dormi duas noites seguidas com ele, entendi que era grave. Não tive vontade de sair correndo, inventar uma viagem de última hora ou dizer que estava muito melancólica e não gostava de mim assim. Ao contrário, quis ficar ao seu lado até me atrasar em efeito dominó. Quis ficar mesmo que em silêncio.
    Quanto mais ficar, é mais provável que eu sofra. Por estar praticando a intuição, sei do meu apego, sei que irei sofrer na separação que virá. Seja eterna, por um dia, um período, a separação vem, sempre vem.
    Me emociono demais, apesar de dizerem por aí que não demonstro ou falo sobre o que sinto. Podem não aparecer, mas os sentimentos estão comigo o tempo todo, se manifestando de outras formas, que não com palavras. Não sou apenas uma mente em ebulição, tenho um corpo que se expressa pelo amor e um coração que dói de tanto esperar e se despedir. Aprendi a disfarçar.
   Mas em momentos de entrega não existem disfarces. Certa noite senti novamente o que nunca pensei ser possível. Uma emoção tão grande que precisava ser extravasada além do gozo. Mas não sou dada a gritos, nem de ira, nem de prazer. Já não falava ou mesmo pensava ou articulava. Apenas sentia. E assim senti lágrimas que não eram de tristeza ou alegria. Era o amor que transbordava. Não havia nada que pudesse ser falado. Por segundos fui nada, sem me sentir vazia. Estava tão cheia de vida que tudo bastava. O corpo dele terminava no meu, sem saber qual coração era o mais cansado. E então consegui dormir como há muito tempo eu não dormia.

domingo, 11 de janeiro de 2015

O Menino João


    Escrevi o texto abaixo no dia 9 de janeiro, não sabia se queria que fosse o primeiro do ano, mas foi. Para quem quer saber sobre minhas férias com Dora, já adianto que ela pediu para voltar uma semana antes. Como eu a amo, deixo-a livre. O avô foi buscá-la. Mas viajei no mesmo carro, com ela e Miranda juntas. Estava dormindo quando descemos, nem nos despedimos. Ela teve muita alergia e queria o pai, desesperadamente. Ribeirão Preto é seu lar, sua casa, onde está sua família. Não há porque seguir o que o juiz manda. Não iria obrigá-la a ficar onde não queria, revendo amigos que não via há 4 anos, enquanto desejava estar com os amigos de Ribeirão Preto. Sua vida é outra vida. A irmã Miranda enche sua paciência. Não há vínculos de irmãs. A alergia é forte, mas o pai não quer eu saiba nem o nome do médico. Não vou insistir com o avô que, em princípio, mostrou-se solícito e disse para juntos ajudarmos Dora a se curar, já que seu filho era irredutível. Tudo dissimulação, era só para não me contrariar, já que sou tão louca. Que 2015 seja um ano bom, com anjos em cachoeiras.




   Chegamos em Boiçucanga com céu azul, final de tarde. Não sabia onde ficaria com minhas filhas. Foram 4 anos sem férias juntas e queria um lugar legal, mas não estava querendo rodar, nem gastar muito e parei no primeiro quarto com banheiro perto da praia. Um chalé simpático, um lugar organizado, com gramado, espaço comunitário para o café da manhã. Gostei de Fran, a dona, decidi ficar lá com Dora e Miranda.
     Antes de dormir ouvi um som suave de violão. “Esse é o lugar certo”, pensei contente. Quando acordei as meninas continuavam dormindo pesado e voltei a ouvir o som de violão, saí do quarto e uma mulher me ofereceu um café sorrindo. Manhã de sol, café, vizinha simpática e um garoto lindo dedilhando com carinho uma viola, perfeito. A mãe, Shirley, toda comunicativa, contou dos acampamentos na Praia Brava na sua adolescência, da singularidade em ser rockeira numa família de negros sambistas, da dificuldade que foi convencer os pais de que, “apesar de ser mulher”, queria fazer faculdade.
    Mas eu não conseguia tirar os olhos do filho João, tão lindo, parecia o Ben Harper jovem. E logo me perguntou sobre as tatuagens de notas musicais, reconhecendo a clave de Dó e o Mi maior e passando os dedos longos sobre elas. O garoto de 14 anos era alto, jogava vôlei, já tinha feito natação, sabia ler partitura e era muito falante, de sorriso largo. Conversamos sobre música, viagens, esportes e tatuagens. Ele disse que com tanta música boa no mundo, não se conformava como tinha gente que ouvia funk. “Mas funk do ruim, não do James Brown”. “Já me disseram na igreja que rock é música do diabo, mas não acho que o diabo seria capaz de fazer algo tão lindo”, filosofou o menino. Também falou do fusca que era do seu avô e que seria seu, que já cuidava do carro. Achei lindo um garoto ter orgulho de andar no fusca do avô.
    Me deu muita esperança conhecer um jovem como João. Quando me disse que nunca tinha ido numa cachoeira logo indiquei a de Boiçu, uma das mais lindas que já conheci. Expliquei o caminho para o pai, avisei que a trilha não era fácil, mas quando se chega ao poço vale cada gota de suor. Disse também que iria lá com minhas filhas, para evitar o horário do Sol forte na praia, porque sei que crianças não ficam no mar o tempo inteiro.
   João tocou Tempo Perdido do Legião Urbana e eu contei dos shows que fui da banda. “Mãe escuta isso! Ela foi em vários shows do Legião!” E cantarolamos “ainda que eu falasse a língua dos homens e falasse a língua dos anjos, sem amor, eu nada seria”. Combinamos uma cantoria na noite de Lua cheia linda que viria. Miranda acordou e João, que tinha uma irmã de 4 anos, logo puxou assunto e espantou-se com o tamanho da criança. Cheio de ternura com a irmãzinha, Sofia, disse que encontou uma amiguinha para brincar. Então Dora levantou e apresentei os dois. João abriu o sorriso lindo. Percebi que ficou feliz em ver que eu tinha uma filha adolescente tão bonita. Não senti ciúmes, confesso que viajei longe e pensei que adoraria ter João como genro.
     Então a família saiu de carro. Disseram que iriam na praia e seguiriam para a cachoeira. Respondi que iria em seguida e nos encontraríamos lá. Mas pensei que deveríamos ter seguido todos juntos, já que eles não conheciam o lugar e que seria perfeito Miranda com Sofia, Dora com João e eu com a mãe rockeira, mochileira e falante. O pai? Bem, era um tanto calado, mas é sempre bom ter um homem quando se faz uma trilha.
    Fomos eu, Dora e Miranda. Há uns 7 anos não fazia aquele caminho árduo e fiquei satisfeita com minha capacidade pulmonar e muscular. Nada doeu. Miranda aguentou firme e forte. Dora só cansou no final. A cachoeira continuava linda e selvagem. E lá ficamos por um bom tempo. Mas muitas pessoas começaram a pular das pedras e senti uma dor no peito, como se uma tragédia fosse acontecer. Contei para Dora que o irmão de um amigo meu do colegial morreu mergulhando ali e que Marcelo Rubens Paiva acidentou-se ali também. Me deu vontade de sair.
   A volta, como sempre, foi mais rápida. Só não foi em tempo recorde porque uma mulher andava devagar e com medo até nas retas. Chegou a ser engraçado. Prudência nunca é demais, mas parar o trânsito é exagero. Por algum motivo, talvez para fazer Miranda ter cautela, falamos sobre escorregar e morrer na trilha. Mas depois eu e Dora concluímos que seria um bom lugar para a alma ficar, no meio da Mata Atlântica, com barulho de água corrente constante. Quando chegamos na estradinha de terra vimos uma equipe de resgate. “Estão vendo meninas? Alguém deve ter se acidentado”.
    Depois fomos até a casa de Nicole, amiga de Dora dos tempos do maternal. Ficamos no mar calmo, límpido e refrescante de Boiçucanga. Achei fantástico ver Dora e Nicole, que tanto se adoravam aos 2 anos, continuarem cheias de afinidade e assuntos. Miranda ficou enciumada, mas em pouco tempo perguntou por que Nicole ria de tudo. “Porque sou feliz”. “Você é muito fofa”, foi a definição instantânea de Miranda para a amiga da irmã.
    Voltamos todas para o chalé para pegar umas coisas e seguir para a piscina na casa de Nicole, duas quadras de distância. Assim que entrei no quarto, Shirley me chamou. Saí sorrindo e perguntei: - Foram à cachoeira?
- Sim. E meu menino morreu.
- Como?
- Ele morreu na cachoeira.
     Então me veio à mente a imagem do resgate chegando. Era para João.
    Abracei-a forte e comecei a chorar e ela me consolou. Disse que ele gritava de alegria por ver um lugar tão lindo, que corria e seguiu numa trilha, mas não voltou. Foi encontrado pelo pai, já sem vida. Provavelmente escorregou e bateu a cabeça numa pedra. Caiu na água. Desacordado, morreu por afogamento. Fiquei sem chão. Não caiu a ficha da mãe, não é possível estar assim tão conformada. Como ela não está me odiando por ter indicado o caminho da morte? Por que eu não estava junto para guiar aquele menino por uma trilha segura? Por que alguém tão iluminado morre tão jovem?
     Pedi para Dora e Miranda irem com Nicole, iria na sequência. Fiquei ali com Shirley e sua filha, esperando o marido voltar do IML, com Fran. Logo o casal dono dos chalés chegou. Estavam desolados, o marido não se conformava por não ter ido junto com eles. “Se tivesse me falado... sempre acompanho os hóspedes na cachoeira, é muito perigoso para quem não conhece”. Eu me sentia cada vez mais culpada. A irmãzinha não sabia muito bem o que tinha acontecido, apesar de ver o irmão desfalecido na sua frente. Quando o pai voltou aos prantos sem o irmão, ela perguntou por ele. E então chorou dizendo que queria o irmão. Lembrei de Miranda querendo a irmã por anos. Sofia não terá mais o irmão...
    Fui buscar minhas filhas. Mas fiquei um bom tempo com a mãe da Nicole, Telminha, que não via há 7 anos. Jantamos lá, as meninas se divertiram muito. Dora queria dormir na casa da amiga e eu deixaria, mas hoje não. Quantas noites passei sem minha filha? Quantas vezes pensei que algo horrível poderia acontecer a ela sem minha presença?
   Dora chorou quando voltamos para o chalé, pensando no menino que não estava mais lá. Estou aqui escrevendo e olhando minhas duas filhas dormindo juntas, na mesma cama de casal. Nosso tempo é estipulado, determinado, sei que será breve nosso encontro. Mas quero estar presente em cada minuto desse tempo. Quero sentir o cheiro delas, a pele, ouvir a voz, o canto. A família seguiu há pouco para São Paulo. Meu coração foi um pedaço junto do menino anjo. Me senti o anjo da morte. Assim que bati os olhos em João senti que jamais o esqueceria. Agora tenho a certeza.