quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Libertem Rafael Braga

  No dia 20 de junho de 2013, justamente dia do meu aniversário, o Brasil parou em manifestações motivadas pelo aumento de 20 centavos nas passagens de ônibus e metrôs da cidade de São Paulo. Começou pelos 20 centavos, mas seguiu por várias reivindicações. O Brasil quase viveu um Estado de Sítio. O movimento já se alastrava há algumas semanas, mas o ápice foi no dia 20 de junho e alguns manifestantes foram presos. Apenas um continuou encarcerado: Rafael Braga, preto, pobre, catador de latinhas, sem nenhuma passagem pela polícia. Em sua mochila havia produtos de limpeza. A polícia disse que era para fazer bomba caseira. Tenho para mim que ele nem imaginava como se fazia bomba caseira. Certamente, agora já sabe.
  Ele seguiu preso por mais de três anos, teve liberdade condicional. A polícia novamente parou Rafael e o revistou. Desta vez encontrou 0,6 gramas de maconha em sua mochila, então, no dia 20 de abril de 2017 ele foi julgado e condenado há 11 anos de prisão. 
  Desde que Rafael Braga foi preso, essa história ficou na minha cabeça, que já estava cheia de erros judiciários. Desde a semana passada, quando saiu o seu julgamento, fui tomada por indignação. Apesar de branca, tenho contato com várias lideranças de movimentos negros e quilombolas. E vi tomar corpo um ato pela liberdade de Rafael Braga. Enquanto a ação se formava, alguns diziam que Rafael é só mais um, que as prisões estão lotadas de Rafaeis. Concordo, mas Rafael é emblemático. Ele é preso político, ele é preso pelo racismo, pelo preconceito. 
   Trabalhei por alguns anos na assessoria do governador Mario Covas, minhas áreas eram Segurança Pública e Administração Penitenciária, como sei que pouca coisa mudou, aliás, só piorou, porque Covas era um bom político, Alckmin é ladrão de merenda*, sei do que estou falando. Interessante ao Estado manter gente presa. Muitos serviços são terceirizados, cada detento vale dinheiro para o Estado. Muitos inocentes ficam esperando serem julgados dentro de celas, passam anos nessa situação. E quando (e se) libertos, já aprenderam tudo sobre vingança, ódio e injustiça. Não pensem que pagamos por cada detento. É o Estado que recebe por eles. 

Ato Histórico pela Liberdade

   Ontem peguei minha filha Miranda, na escola Teia Multicultural, e seguimos para o vão do MASP da avenida Paulista, na vigília pela libertação de Rafael Braga. Por redes sociais foi organizado um movimentoAlckmin é ladrão de merenda* que se estendeu por vários Estados do Brasil e alguns países da América do Sul. Quando chegamos, uma via da avenida já estava bloqueada. Um carro de som dava voz às lideranças de movimentos negros. Entre uma voz e outra, um rap de protesto. Alguns, como eu e Miranda, acendemos velas.
   Uma líder negra vociferou palavras contra brancos que prendem e matam,  que ali só deveria ter preto, que estavam aproveitando a ação por Rafael Braga para convocar a população para a Greve Geral do dia 28 de abril, para a Marcha da Maconha, dia 6 de maio. Não seria eu, a branquinha que sofre há 13 anos no Sistema Judiciário, a dizer que ali não era para libertar um preto pobre, era para libertar a todos do sistema judiciário corrupto, vendido, assassino. Não seria eu a dizer que, se maconha fosse legalizada, ninguém seria preso por portar 0,6 gramas de maconha. Nem pretos, nem brancos, nem amarelos.
   Mas eu entendia o discurso de ódio dela. É uma mulher e negra. Eu sofro por ser mulher, imagino o sofrimento em dobro, se fosse negra. Eu entendi quando ela disse que "Querem que nosso movimento seja pacífico? Alguém é pacífico com a gente?". Eu entendi o ódio dela, a vontade de gritar sua raiva. Também tenho vontade de vomitar a minha. Por coincidência ou não, após sua fala, chegou a Força Tática do Exército. Muitos carros da polícia já estavam lá quando chegamos. Ninguém teve medo, ninguém foi violento. A partir daí palavras de ordem contra a violência militar. Depois todos sentamos na avenida Paulista e fizemos um minuto de silêncio. Após o silêncio, uma líder gritava nomes como "Amarildo! Claudia! Luana! DG! Maria Eduarda!". Todos mortos por balas da Polícia Militar. Amarildo até hoje desaparecido. E todos respondíamos: Presente!
   Um grupo de atores negros fez uma encenação muito comovente por ser absolutamente verdadeira. Apenas retrataram o que vivem todos os dias. "Preto não tem medo de morrer, a gente sabe que pode morrer de bala perdida todos os dias". "A caneta da Justiça nos mata todos os dias. A caneta da Justiça nos mata todos os dias". Eu chorei. Porque fui morta várias vezes em Fóruns, fui desqualificada, fui desumanizada. Eu e tantas mães. Eu e tantos jovens negros. Eu e tanta gente pobre. Eu sou mais uma a ser morta pela caneta da Justiça. Rafael Braga não será mais um. 


 * O Governo de Geraldo Alckmin desviou dinheiro das merendas das escolas públicas do Estado de São Paulo. Até hoje, nada foi feito. A Justiça não é cega. É corrupta, elitista, patriarcal e branca.
  

O Show de Talentos da Teia

   A Escola Teia Multicultural, em São Paulo, onde Miranda estuda, é diferente em vários aspectos e não por acaso saiu recentemente numa publicação sobre escolas inovadoras. Bem, eu conheço a Teia muito antes dela existir. Lá no meio dos "anos 80", quando conheci Georgya Corrêa na sala de aula. A garota de 15 anos, que se tornou uma das melhores amigas do colégio, não cansava de falar da escola em que estudou quando morou na Índia. E como aquele método de ensino fazia muito mais sentido na vida prática do que como aprendíamos nas nossas escolas tradicionais.
  Mas falar do surgimento da Teia é material para tese de mestrado (aliás, coisa que a Georgya já está fazendo). O que tentarei reproduzir aqui é um dos momentos únicos que essa Teia de amor, solidariedade e conhecimento proporciona a todos e qualquer um que a conheça: o tradicional Show de Talentos da Teia.
   Miranda estava se preparando para o Show de Talentos há algumas semanas. Todo dia cantava a música Nem Uma Verdade Me Machuca, da Pitty. A letra é complexa e bem profunda. Mas ela diz ter dúvidas se canta ou se faz um cati do kung fu. Incentivei a apresentar o cati, "porque todo mundo vai achar diferente", "porque se errar, ninguém vai perceber". Mesmo sabendo cantar e acertando as notas, conheço minha caçulinha e sei que, caso errasse, poderia cair no choro. Ela é exigente demais com ela mesma. Talvez eu seja exigente demais. Enfim, decidiu apresentar o cati.
   Chegar na Teia em dia de festa é uma alegria. É dia de encontrar velhos e novos amigos. De cara encontrei o querido André, irmão da Geo, que tem uma filha também na Teia. Conversamos sobre muitas coisas da vida. E como nossos encontros são breves nunca temos tempo para banalidades. Nossas vidas podem ser tudo, menos banais. Em 15 minutos falamos de carreira, de filhas, de prazeres, de sonhos, de possibilidades, de vocações.
   Então começo a ver os shows com Cauã (filho mais novo da Geo) e sua legião de tietes. Antes mesmo de cantar, acompanhado de seu pai Tanã ao violão, já era ovacionado pelos amigos. E quando pegou o microfone  para cantar Pokemon, até eu acompanhei fazendo coral. 
   Foram tantas as apresentações marcantes, que não cabem todas aqui, mas vou pontuar algumas. Quando a pequena Sofia foi chamada para cantar ninguém esperava o que estava por vir. Antes da música começar, ela disse, em tom sério e emocionado: "Essa música eu dedico para o meu avô. Ele tem uma doença, que chama câncer". Então, com voz doce e um tanto embargada, começou a cantar Teresinha, de Ana Larousse https://youtu.be/5k4cCt__hWU. São poucas as pessoas que não tenham um caso próximo, ou mesmo distante, com o câncer. Eu chorei. Olhei ao lado e duas mães choravam. Muitas crianças choravam. Não sei se pelo avô de Sofia ou pela música linda, cantada de forma suave e, mesmo com lágrimas, até o fim. Muitos abraçavam crianças, que também choravam e já nem sabiam porque. Sabiam que ali alguém sentia dor e queriam dividir essa dor. Porque, de alguma forma, já sabem, que a dor dividida, diminui.
   Depois de Sofia, foi a vez de Tsu, um menino encantador. Percebi que ele não sabia bem como começar, como transformar aquele tanto de lágrimas em risos. Pegou o microfone com sua voz rouca e seu jeitinho charmoso e cantou Mais Ninguém, da Banda do Mar https://youtu.be/61jSSF3Vu54. E o ambiente foi tomado por um clima de amor e música, bem ao estilo Mallu Magalhães e Marcelo Camelo. Muitos aplausos, ainda algumas lágrimas.
    Quando o menino Martin fez o seu tradicional show de mágicas, pediu assistentes. Todos levantaram as mãos, mas, claro, ele chamou essa que vos escreve para ser "hipnotizada". E lá estava eu, sendo hipnotizada, desaparecendo atrás de um lençol e, por mais que o outro assistente tenha me deixado aparecer, todos aplaudiram como se Martin fosse o mago dos mágicos.
   Algumas patinadoras, bailarinas, menina da fita, interpretações depois, vem o irmão de Tsu, o pequeno Petrus e mais três colegas, cantando cheio de malandragem e swing Nem Vem Que Não Tem, do Wilson Simonal https://youtu.be/ssHV0eTCeTc. As lágrimas passaram a ser de excesso de riso. Foi hilário!
   Algo transformador e, ao mesmo tempo, tão simples, nesse Show de Talentos, é que a palavra talento foi usada em sua forma mais esplêndida. Talento não é apenas um dom, algo que alguns nascem com e outros sem. O talento pode ser genético ou ser desenvolvido. Ter talento não é ser o melhor no que se faz. Mas é ter habilidade para algo, que pode ser artístico, físico ou mental. É gostar de fazer e fazer, mesmo não sendo um virtuose. Muitas vezes temos talento para alguma coisa, mas nunca descobrimos. A Teia desenvolve talentos natos e aflora talentos que nem imaginávamos existir. E o mais emocionante na apresentação dessas pequenas criaturas é o entusiasmo, a forma como um incentiva o outro, como um amiguinho torce pelo desempenho do outro. E aplaudem! E dão urros! E vibram! E sentimos a vida pulsando e uma tremenda esperança nessa geração que está crescendo com valores realmente humanos. 

   Ah, sim, Miranda apresentou seu cati, ficou chateada porque errou, mas eu disse que ninguém percebeu que ela errou, nem eu. E a menina Sofia, que emocionou a escola inteira cantando Teresinha, veio parabenizar Miranda:" Você arrasou!". E eu, como sempre, me emocionei.