sábado, 22 de abril de 2017

Kurt Cobain, Hannah Baker e o Tabu do Suicídio

   No último dia 20 de fevereiro eu estava vendo um vídeo do Nirvana. Minha filha Miranda, 8 anos, que adora a banda, mas nunca tinha visto "a cara dos caras", olhou para Kurt Cobain e disse: "- Que bonitinho! Ele já morreu?". A pergunta pode parecer estranha, mas é que desde a descoberta de que Tim Maia estava morto, ela percebeu que a maioria das pessoas que gosta de ouvir, já não está mais aqui. Depois perguntou se morreu novinho ou velhinho. Novinho. Como? De uma doença. Qual doença? Uma que deixa a pessoa muito triste, tão triste que ela não quer mais viver. "Tão novinho, tão lindinho, fazia cada música legal, não tinha ninguém para ficar com ele?".
   
   Depois disso, nem disfarcei minhas lágrimas. Me dei conta de que seria o aniversário de 50 anos de Kurt Cobain. Lembrei do dia da sua morte, quando eu estava no carro esperando minha prima Keila e ouvi a notícia na rádio. Quando ela entrou, sempre tão linda e falante, viu que eu estava meio em transe. Éramos fãs do Nirvana. Nós duas choramos. Ouvimos Nirvana a noite inteira. Não achei romântico, não achei bacana ser mais um se matando aos 27 anos. Senti muita raiva, principalmente porque não fui no show do Nirvana quando vieram ao Brasil e só porque tinha um jogo coletivo de pólo aquático. Eu era dessas que achava que teria outra oportunidade, porque estavam no auge e viriam muitas vezes ao Brasil. 
   O suicídio de Kurt Cobain acabou com muitos sonhos, inclusive o meu de vê-lo ao vivo, vivo. Quando ele morreu o mundo foi obrigado a falar sobre suicídio. Agradeço a ele por fazer as pessoas pensarem sobre isso, se importarem com a depressão. Seria imensamente melhor que continuasse fazendo músicas lindas, expressando os sentimentos juvenis de angústia, filosofando sobre dor, vida, amor, morte. Seria melhor ainda para a filha dele que cresceu sem pai. Mas, se houve algo de produtivo nisso, algum valor em sua morte precoce e trágica, foi trazer o assunto para a superfície.

   Cada religião tem um paradigma, uma doutrina, ou seja lá o que for, já que não tenho religião nenhuma e pouco sei sobre essas doutrinas. Quantas guerras santas a humanidade já viveu? Vejo muçulmanos e judeus se odiando, católicos contra protestantes, evangélicos contra espíritas, contra umbandistas, daimistas. Nunca chegam a acordo nenhum, porém, unanimemente, condenam o suicídio. Para muitos é pior ser um suicida do que um assassino. Homicidas tem perdão. Suicidas não. Talvez porquê se todas as pessoas que sofrem, que não encontram sentido na vida, que não suportam tanta desgraça, guerra e ódio, começarem a relevar o suicídio como saída, poucos sobrarão. E não terá mais igreja, dízimo, hereditariedade, herança, Governos.

   Tive uma depressão profunda em 2004. Pessoas próximas, que me conheciam desde que nasci, falaram que era falta de problemas, falta de tanque de roupa suja para lavar. Pessoas que me conheciam há pouco tempo passavam todo o tempo comigo, só para eu saber que tinha alguém do meu lado. Só para fazer algo que eu conseguisse comer. Estou falando de dois amigos que terão sempre um espaço gigante para tapar o buraco que às vezes surge no meu coração: Paula Gil e Marcel Santos. A Paulinha tinha histórico de depressão na família e sabia que era algo muito grave. Marcel não conseguia entender porque me sentia assim, nem eu entendia. Mas ia na minha casa cozinhar para mim e minha filha Dora, na época com 2 anos, cuidar do meu jardim, das minhas cachorras. Talvez nunca saibam (ou fiquem sabendo agora) a gratidão eterna que terei por eles. Outros também me ajudaram e posso estar sendo injusta em não citá-los. Mas esses dois fizeram por mim algo inesperado para o pouco tempo que me conheciam. Não havia motivos para me quererem tão bem.

  Quando finalmente venci a depressão, outras lutas maiores vieram. Lutas que já detalhei nesse blog. E claro que deprimi de novo e de novo e de novo. Só que mais calejada, identificava a melancolia, a tristeza que, se deixasse, me derrubaria outra vez, me deixando sem vontade de comer, sem vontade de dormir, sem vontade de ser, sem vontade de fazer. Ninguém fica assim porque acha bonito. Aliás, também ficava sem tomar banho, sem lavar os cabelos. E cheguei a pesar 45 kg. Não, isso não era bonito, inclusive, era muito horrível. Depois da crise, percebia o tempo perdido, a vida indo embora tão rápido, eu envelhecendo. E depois disso queria fazer tudo: encontrar amigos, viajar, fazer amor, nadar, ler, escrever, trabalhar, cuidar. Depois disso, teve um ano, 2013, que perdi duas pessoas que amava muito, no espaço de 6 meses, levadas pela mesma doença. Então me culpava porque elas eram cheias de vida e vontade de viver. E eu, cheia de saúde, tive vontade de morrer.

  Tem um motivo para a depressão? Sim, é a falta de serotonina, um neurotransmissor responsável pelo ânimo. E você luta para produzir serotonina e não consegue. Porque é difícil para quem tem depressão ir na praia, praticar esportes ou caminhar. Até levantar da cama pode ser um obstáculo imenso a superar. E então existem os remédios. Ah, como a indústria farmacêutica ama os deprimidos. E para quem nunca tomava remédio nem para gripe, como eu, é fácil viciar nesses remédios mágicos, que deixam as unhas da sua cachorra Nirvana, azuis. Sim, eu tive uma cadela pastor alemão chamada Nirvana, que surgiu na minha vida um mês após a morte de Kurt Cobain. E ela tentou muito me tirar da depressão. Tanto que até morreu de câncer. Não entendia o meu abandono. E eu queria me enfiar embaixo da terra cada vez que a veterinária me falava que eu não estava cuidando bem dela...

  Os tempos andam tenebrosos. Paira uma nuvem de guerra no ar. Os reacionários estão surgindo aos montes, as redes sociais dão vozes aos cheios de ódio, aos covardes, preconceituosos e tolos. A maioria das crianças fica entretida em celulares, tablets, notebooks. Vejo entristecida pessoas se comunicando apenas por aparelhos. Faltam abraços, faltam olhares, falta amor. Eu tenho medo do futuro, como nunca tive. Não por mim. Por minhas filhas. Por meus amigos, por meus amores. Eu sempre tive essa mania de sofrer pelos outros, pelo mundo. Queria ser mais ignorante, apenas ignorar os acontecimentos e seguir numa simplicidade burra, alienada, mas feliz. O conhecimento pode deprimir. Mas é tanta gente fazendo o mal que não podemos descansar. Temos de continuar lutando para tentar mudar esse panorama mundial catastrófico. Porque o que acontece na Síria também nos atinge aqui.

13 Reasons Why

   Então começa uma séria na Netflix sobre uma adolescente que comete o suicídio e deixa fitas cassetes sobre as suas razões, culpando alguns colegas e um conselheiro da escola. Eu vi no dia que começou, por acaso, sem saber bem o que era. Pensei até que fosse algo bem adolescente, bobinho. Mas não é, ao contrário. E leio várias matérias sobre as razões de não ver essa série. Psiquiatras dando mais de 13 razões para não ver. E muitas pessoas começaram a me marcar para não ver. Mas era tarde. Acompanhei cada crise de ansiedade do garoto Clay e queria dar uma adiantada para ouvir logo as fitas, já que ele não ouvia tudo de uma vez. Soube até que o livro que originou a série foi proibido no Brasil. E no livro ele ouvia tudo em uma noite.
   Li jornalistas falando que a série poderia causar o Efeito Werther, termo usado a partir da onda de suicídios que aconteceram na Europa após o lançamento do livro Os Sofrimentos do Jovem Werther (1774), do autor Johan Wolfgang von Goethe, que eu considero uma uma obra-prima. Os suicídios foram relacionados à influência do personagem de Goethe. Porém esse impacto nunca foi confirmado. São apenas tentativas científicas de correlação. Acredito que seja o hábito humano de encontrar culpados para tudo. É mais fácil colocar a culpa numa série do que analisar os motivos do suicídio juvenil. É a segunda maior causa de morte entre jovens de 15 a 29 anos. 
   Na minha humilde análise, recomendar não ver a série é só um atrativo a mais para vê-la. Ao invés de criticá-la ou censurá-la deveriam debatê-la, ver como uma oportunidade de falar sobre o assunto com jovens. Foi o que eu fiz com minha filha adolescente. Com a amiga da minha filha, filha dos meus amigos. Não falar de suicídio não vai evitar  que ele aconteça, só vai trazer mais culpa para quem fica. Algumas razões da personagem Hannah Baker podem parecer banais, mas para quem está deprimido, sentindo-se isolado, ridicularizado e abandonado, qualquer olhar cínico pode ser um motivo. Fazer piada da tristeza alheia é desumano. Precisar ter uma série sobre como as pessoas se tratam mal para percebermos que precisamos ser mais gentis  uns com os outros já é um parâmetro de como a humanidade vai mal. Eu não quero mais nenhum jovem ou velho se matando porque se sente sozinho. Mas isso vai continuar acontecendo. E precisamos falar sobre isso. Da próxima vez que você ouvir alguém próximo ou nem tão próximo dizendo que "não aguenta mais viver" ou que "preferia estar morto", pode ser mais do que uma força de expressão. Pode ser um último pedido de socorro. 

Um pouco de música para os fortes, feita por alguém que nunca foi fraco:


  



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