sexta-feira, 27 de novembro de 2015

O Corpo é Meu

   Há algum tempo vem circulando nas redes sociais do Brasil coisas do tipo #meuprimeiroassedio e #meuamigosecreto. Para quem não entendeu: é uma forma da mulher liberar um assunto muitas vezes sufocado, engasgado e esquecido em algum lugar sombrio da mente. Sempre houve assédio forte e precoce e o tal "amigo secreto" é alguém que teve confiança das mulheres e traiu essa confiança, usando-a.
   Tenho incontáveis amigos homens que são muito participativos na causa do feminismo. Mas jamais poderão ser feministas, pois não são mulheres. Assim como sou partidária contra a homofobia e racismo, mas jamais poderei lutar verdadeiramente pela causa, já que não sou homossexual, nem negra. Sinto o racismo de outra forma, como senti ao ter um namorado negro. Sinto a homofobia quando percebo olhares que recriminam meus amigos gays. Então só as mulheres sabem o que é andar na rua e ouvir todos os tipos de "gracinhas", como se fossemos feitas para isso, como se fôssemos objeto de prazer. Só nós sabemos o que é ter que puxar a saia para baixo ou diminuir o decote para não sentir-se um pedaço de carne suculenta perto de ser devorada.
   Fiquei peituda e cheia de formas muito cedo. No ambiente aquático que frequentava sempre me senti completamente feliz e a vontade com meu corpo. Acredito que os meninos que nadavam, cresceram com a gente, viam tantas garotas (claro que o número masculino era bem maior), que nunca me senti devorada. Sempre me senti respeitada. E hoje percebo a sorte que tive. Às vezes penso quantas mulheres já foram estupradas e quantas vezes voltei sozinha para casa tarde da noite e nunca passei perto disso. Nem com pessoas próximas, que é como acontece o maior número de estupros infantis. É triste pensar que tive sorte, até porque tenho duas filhas e temo muito por elas também. E ainda temo por mim. E por todas as mulheres.
    Meu primeiro assédio, que me lembro, assédio pesado, veio do pai de uma amiga, uma grande amiga. Eu tinha 13 anos, um corpo de 18 e estava no quarto dela. O pai se aproximou da cama onde eu lia um livro. Passou a mão nos meus cabelos. Não senti nada de diferente, pois meu pai me tratava assim, com muito carinho, com afagos. Mas o pai da minha amiga me puxou para beijá-lo na boca. Fiquei tão confusa que só consegui gritar pelo nome dela, que em pouco tempo veio da cozinha. Ele saiu. Não contei nada a ninguém e nunca mais dormi na casa dela. Esta é a primeira vez que comento o assunto. Nunca esqueci, mas não se tornou um trauma. Foi um jeito de me tornar mais esperta quanto à maldade e covardia de certos homens.
     Não sei se foi a partir desse dia que fortaleci ainda mais meu desejo de ser reconhecida por minhas ideias e histórias e não por meu corpo e pele macia de nadadora (o cloro diário tira toda a camada de células mortas da pele, por isso, ao contrário do que se pensa, atletas aquáticos não tem pele detonada e sim, muito macia). Usava óculos e nunca pensei em colocar lente de contato, nunca tratei meu cabelo mais do que com shampoo e condicionador. Eu mesma faço as unhas e muitas vezes corto o próprio cabelo, um jeito punk de ser, do tipo "faça você mesmo". Também cortava o cabelo das minhas amigas da natação. Corto cabelo de amigas até hoje. Ontem mesmo cortei o cabelo de uma amiga.
     Tive alguns namorados muito ciumentos, que não aceitavam eu ter amizade com outros rapazes ou mesmo com ex-namorados. Acontecia que o namoro sempre acabava. Não sou de provocar ciúmes. Mas ninguém pode ser meu dono, a não ser que eu queira ser de alguém. E já quis e quis muito. Mas, geralmente quando eu quero ser só de alguém, esse alguém não quer.
    Enfim, tentei ao máximo ser reconhecida pelo que sou e não pelo que tenho ou tive. Mas nunca teve jeito. Os garotos e os homens sempre falavam dos meus seios fartos, da pele, do cheiro... aceitei. Hoje meus seios são pequenos, "murchos". E me intriga que ainda, aos 45 anos, me sentindo bem acabada fisicamente, continue atraindo pelo corpo.
     Aceitei que o interesse começa pelo corpo, pelo que é visto por fora. Mas só dura e vale muito mais o que cresce com os sorrisos, a intimidade, as histórias de vida, as caminhadas pelas ruas, as idas ao cinema, os mergulhos no mar, a amizade que fica quando o amor romântico acaba. Então decidi que o corpo era meu e que eu faria o que quisesse com ele. Sexo casual, quando você não espera, mas dá vontade e acontece. Sexo com amor, aquela coisa sublime e rara, que é maravilhosa e depois te faz sofrer. Sexo por compaixão, quando você nem está com muita vontade, mas sente tanto a vontade do outro que cede e acaba sendo muito bom também. O corpo é tão meu que digo não, mesmo com muito desejo, porque penso e sei que o depois vai ser um vazio de abismo. Não quero ser só um pedaço de carne. Não sou, nunca fui e nem serei.
      E o dia mais feliz para mim será quando todas as mulheres tiverem poder absoluto sobre o próprio corpo, sem medo de serem atacadas pela roupa que estão usando (embora muçulmanas de burca também sejam estupradas), sem agradecer por nunca ter sido violentada fisicamente. E também sei que, se esse dia chegar, não estarei mais aqui.

sábado, 14 de novembro de 2015

O Mar de Lama


    Desde o rompimento das barragens em Mariana (MG), no último dia 5, tento escrever sobre essa catástrofe ambiental, a maior da história do País. Mas eu esperava mais notícias e meu instinto curioso e investigativo não cansou de procurar fora das grandes mídias nacionais. Porque se fosse depender de Rede Globo ou Folha de São Paulo para manter-me bem informada, só saberia como o brasileiro é solidário, como foi o resgate da cadelinha após 3 dias soterrada. O sofrível apelo ao sentimentalismo, sempre. Não que os desabrigados de Mariana não mereçam receber doações de todos os cantos do Brasil. Mas se a barragem rompida pertence à Samarco/Vale do Rio Doce, essas deveriam enviar todos os donativos, providenciar hospedagem às vítimas, tratar dos funerais.
   O que eu previa, no meu não acadêmico conhecimento ambiental, é que a contaminação seria grande e inevitável e o curso do rio Doce seguiria levando a tabela periódica inteira até desaguar no mar. Alguns dias depois, lendo mídias locais, soube que Governador Valadares estava sem água e a previsão é que esse cenário caótico se estenderia por um mês. Um mês sem água! O que acontece em uma cidade sem água nos hospitais, escolas, casas e ruas? Vi imagens de pessoas recolhendo água de esgoto.
    No dia 12 de novembro, enfim, saiu o resultado de análises laboratoriais de amostras da água do rio Doce, encomendadas pelo Serviço Autônomo de Água e Esgoto (SAAE), de Baixo Guandu. Foi detectada a presença de metais pesados como chumbo, alumínio, ferro, bário, cobre, boro e mercúrio. O Rio Doce está morto! É aterrador, não serve mais para nada (irrigação, animais e pessoas). Fora o tanto de animais e plantas mortos pelo caminho. O mar de lama foi devastando todo o ecossistema que encontrava pela frente. Só no dia 12 de novembro o Governo Estadual solicitou ao Federal o apoio do Ministério da Integração Nacional e do Exército Brasileiro para “amenizar” os problemas que serão enfrentados pela passagem da lama pelo território do Espírito Santo. A principal preocupação é com o abastecimento de água. Alguém sabe o que acontecerá quando essa lama chegar ao mar? Já estão sendo tomadas providencias quanto a isso?
   E tem mais: o rompimento dessas barragens não foi acidente! Não é possível tratar como tal. Há mais de dois anos foi feita uma perícia e o resultado é que as barragens estavam condenadas. Foi uma tragédia anunciada, como tantas no Brasil. Não foi abalo sísmico! E a imprensa não cobre como deve cobrir um acontecimento desses. Seria porque a Vale do Rio Doce é grande anunciante? Será porque esqueceram de fiscalizar tudo o que foi privatizado nesse País desde os anos 90 e as grandes corporações de comunicação se negam a denunciar mazelas do PSDB?
   E onde estava esse Governo desgovernado que nem para sobrevoar de helicóptero o local? Onde estavam presidente Dilma, ministros do Meio Ambiente e Minas e Energia? Estavam tentado limpar e encobrir a própria sujeira? Reunião de cúpula para decidir qual a melhor desculpa a ser dada?
   Esse mar de lama dá menção a várias metáforas. Eu mesma tenho vivido num mar de lama, tenho me sentido um lixo físico, mental e moral. E não é possível nadar na lama, nem enxergar nada. É uma cegueira absurda, que faz com que eu conheça o pior de mim, porque não vejo horizontes, porque fecho meus olhos e sinto o que há no meu coração. Há indignação e dores da alma. E a dor é bem maior do que as dores do corpo. Porque Justiça aqui tarda e falha. Porque a Direita quer nos ver de novo nas trevas. Perde tempo em retrocessos como criminalizar o aborto para estuprada! Isso na mesma semana em que considera família apenas um lar com homem, mulher e uma criança. Então o que dizer para o filho do estupro? Porque há pouco tempo queria a Cura Gay. Isso nada mais é que desviar a atenção do que realmente importa. Porque não temos mais esquerda.
   Sei que ainda há muito para investigar sobre a tragédia que começou em Mariana e segue até o mar. Quanto mais procuro, mais acho. E quando começava a escrever esse texto aconteceu o atentado em Paris. Prato cheio para a grande mídia brasileira, que jogou os holofotes para lá, desviando a atenção como se desviam nossos milhões para bancos suíços. Tenho amigos em Paris. Falei com um por longo tempo ontem mesmo, Jamiro Oliveira. Ele está bem e contou um pouco do caos de lá. Mas isso eu escreverei em outro post. Porque o mar de lama aqui é grande, é um reflexo do nosso desgoverno. Como bem escreveu meu colega jornalista e poeta, André Argolo:

Toda barragem tenta conter
o que não se quer contido
e quando vaza, é enlouquecidamente

terça-feira, 3 de novembro de 2015

Precisamos Falar Sobre Suicídio

    O que tem de gente se matando não pode mais ser ignorado. No último mês soube de cinco suicídios cometidos na Baixada Santista, mais precisamente em Santos e Guarujá, três deles na última semana, de pessoas entre 20 e 50 anos. Duas mulheres, um garoto lindo. Amigos de amigos meus. Penso que não exista uma pessoa que não conheça alguém que se matou. Se for falar em conhecer quem já tentou se matar, esse número quadriplica.
  Acontece que esse assunto é um dos maiores tabus que persiste na humanidade. Talvez o maior. As famílias não falam sobre isso, evitam dizer a verdade sobre a morte do ente querido. A mídia não divulga, pois há uma "estatística" de que quando alguém "famoso" se mata ou quando se publica, aumenta o número de suicídio. Quando trabalhei no Governo do Estado de São Paulo fiquei estarrecida com o número de suicídios cometidos nos metrôs paulistanos. Não era divulgado.
   Dói falar nisso? Sim, dói bastante, é triste saber que alguém com saúde física, com família, amigos, se mata. Li em algum lugar que o desespero é o amor desgovernado. Então penso que as pessoas que cometem suicídio estão desesperadas, sem esperança de nada. Elas tem amor dentro delas, tem o amor dos outros, mas não sabem governá-lo. 
   A depressão é algo que se instala aos poucos e as pessoas próximas precisam estar atentas, muito atentas. Pode começar com falta de apetite, falta ou excesso de sono, desleixo com tudo. A depressão é uma falta que não tem explicação. Há culpa, medo de pedir ajuda e não ser ajudado, paúra de se tornar um estorvo para os outros. Quem tem depressão pensa que ninguém o quer por perto, pois realmente é muito difícil ficar perto de quem está longe de si mesmo. Como disse Gustavo Liedtke, um amado amigo meu: "quando você fala em suicídio, eu morro um pouco também". Acredito nisso e penso que todos os deprimidos também, por isso não falam.
   Muitas vezes o deprimido não quer morrer, quer mudar de vida. Muitas vezes acredita que há algo melhor depois da morte. Muitas vezes é só um ato alucinado, onde não há real intenção de morrer, mas de chamar a atenção para sua dor. 
   Quando alguém que parece ter tudo (amor, família, dinheiro, profissão, carreira) se mata, fica uma indignação em volta, uma certa frustração dos que ficaram, não tem nada disso, mas seguem alegres. Mas é preciso pensar que pode haver um buraco tão grande dentro dessa pessoa que a mesma se perde dentro dele e não consegue sair. Não consegue olhar em volta e ver todas as coisas lindas que existem nesse mundo. Também há guerra, ganância, capitalismo selvagem, destruição. Para haver o bem é preciso haver o mal, senão, como saberíamos diferenciá-los? 
    Sempre fui do tipo que sofre pelos outros, que sente a dor do outro, sou de uma compaixão exagerada. Na maioria das vezes em que me machucaram, guardei para mim a dor, evitando sempre a briga, o conflito. Guardar tanto machuca ainda mais. Então fico parecendo aquela pessoa tão boa e abnegada que aceita tudo. Mas não sou assim e decidi mudar. Não quero partir para brigas inúteis, mas não quero mais deixar parecer que está tudo bem. Porque não está bem. Resolvi mudar e apagar tudo do passado que possa me deixar triste. Quando lembranças ruins chegam, eu parto. Quando lembranças boas chegam para lembrar que são só lembranças, mudo a estação. Quando fico sabendo que alguém jovem, com uma vida inteira pela frente, matou-se, sinto compaixão. Sei que tentou até onde conseguiu. Sei que será julgado. 
    Os que tentam se matar e não conseguem são, da mesma forma, muito julgados. Como se as pessoas próximas não o deixassem esquecer de tal desatino. Isso machuca demais. Deixem que a pessoa fale quando quiser falar. Digam que estarão sempre quando ela precisar, mesmo que não consigam estar. Talvez por ter essa compaixão com suicidas, me chegam sempre pensamentos autodestrutivos um dia antes de alguém próximo se matar. Parece que os pensamentos das pessoas chegam até mim. Sinto como se os pensamentos não fossem meus. É um dom de presságio que eu não gostaria de ter. Preferiria que viesse a imagem da pessoa, para que eu pudesse ligar para ela, correr até ela e abraçá-la. 
     Aconteceu isso no ano passado. Eu estava com uns pensamentos mórbidos, pensei que era pelo período de mudança, de tentativa de mudança que eu passava. Tive insônia. E no dia seguinte veio uma trágica notícia. Nesta semana também me senti muito mal, sem dormir, sem comer. Dias depois, trágica notícia. Seguida de julgamentos, apontamentos, injúrias. E a pobre moça, linda, cantante e cheia de vida pela frente, não poderá nem se explicar. Há explicação?
     As religiões abominam o suicídio. Pregam o inferno para quem os comete. Há culpa o tempo todo, arrependimento. É uma decisão tão pessoal, como julgar o que o outro sentia para fazer isso? Não pensou nos filhos? Não pensou nos pais? Nos amigos? Óbvio que não! A pessoa não pensa nem nela mesma, como pensar nos outros?
    A pessoa está em desespero, que é o tal do amor desgovernado. Só não entendo porque esse medo em falar sobre suicídio. Admiro quem conta suas experiências, as torna públicas. Admiro quem tem coragem de falar a verdade, a sua verdade, pois sabemos que a verdade tem dois lados.
     Se você, que lê essas linhas confusas agora, conhece alguém com os sintomas acima citados (falta de fome, de sono, desleixo, apatia), não pense que é preguiça, falta de vontade, desânimo. Quando é passageiro, pode ser apenas uma melancolia sobre coisas da vida, mas quando o estado de paralisação não passa, ajude quem você ama. Talvez só precise colocar o seu amor nos trilhos.