quarta-feira, 23 de setembro de 2015

As Transformações Afetivas


    As relações afetivas passaram por uma mudança radical nas últimas duas décadas. Eu, que as vivo antes da revolução digital, sinto na pele a angústia da transformação. Antes apaixonava-se por alguém através do olhar, pelo som da voz, pelo cheiro que inebria, pelo toque inesperado que arrepia. Hoje abre-se o coração para estranhos, em assuntos profundos, antes só ditos para os amigos mais íntimos, fala-se de melancolias existenciais, busca da espiritualidade, desejos, indecisões. Pessoas agora apaixonam-se pelo que leem sobre o outro e o que o outro diz sobre si mesmo. Então passam do virtual para o real e vivem uma paixão, que logo acaba. Ou dura para sempre. Conversas virtuais podem ser as mais sinceras ou as mais falsas, cheias de sortilégios. Há uma dificuldade enorme em se criar vínculos, proporcional a de quebrá-los. Há antagonismo em tudo.
    Não nego que muito antes da internet, a escrita já me seduzia. Como viajava muito e conhecia nadadores pelo Brasil afora, era comum e um imenso prazer escrever cartas, levá-las ao correio, esperar a resposta. Numa dessas competições conheci um menino, ainda mais novo que eu, então com 12 anos. Era gentil e falante, um tanto precoce, lia bastante, quebrava recordes. Escrevíamos cartas e eu ficava admirada com o português sem erros, a narrativa do seu cotidiano, de suas aflições. Mas o contato se perdeu porque não havia nem e-mail e mudei de categoria (de Infantil para Juvenil).
Uns três anos depois nos reencontramos numa outra piscina. Ele já maior do que eu no tamanho. As cartas voltaram. Me apaixonei. E quando as cartas pararam e quando parei de nadar, as notícias cessaram. Foi mais fácil esquecer.  Era muito mais fácil desligar-se de alguém, ao menos mentalmente. Sem ter notícias, sem procurar notícias, o esquecimento vem, mesmo que as impressões do amor fiquem eternizadas no coração.
   Antes, se você quisesse mesmo escapar de alguma relação torturante, daquelas que você sabe que não tem mais jeito, mas não consegue esquecer, era só frequentar outros lugares ou, em casos extremos, mudar de cidade. Hoje você está em outro País e sabe como e o que o outro está fazendo. E a confusão é para os dois lados. Quem decide terminar não consegue se desligar, quer saber se o outro está bem, se já encontrou alguém. Quem foi “terminado” também quer saber se o outro está bem ou se já tem outro alguém. E um procura saber do outro, pela mesma razão, mas com sentimentos distintos. É muita energia e tempo perdidos. Há falta de autocontrole.
    Assim como é difícil levar, é também tão fácil trazer. Aquele que estava esquecido ou guardado com carinho em algum lugar do seu inconsciente ou coração, aparece na sua timeline como sugestão de amizade, você convida, você aceita, você começa a ler o que escreve, constata que sua narrativa é ainda mais cativante, que sua personalidade é humanista, que seus hábitos são saudáveis. Pensa em tudo que poderia ter sido e não foi.
    Você deixa tudo como está. Não quer mais começar ou terminar nada. Quer seguir resolvendo seus problemas e tentando salvar o mundo. Quer lutar por causas nobres e pessoais. Tenta controlar a curiosidade, para de mostrar o quanto está bem ou sofrendo. Sumir virtualmente agora parece uma espécie de morte. As pessoas começam a ficar preocupadas com você. Mas ao contrário, sumir deste mundo, é um abraço na vida!
    E num dia ensolarado você pode reencontrar alguém que atravessou décadas de transformação, como você. E percebe que as palavras escritas são mesmo sedutoras, são tocantes, emocionam, divertem e podem causar muita admiração. Mas nada supera olhar nos olhos, enquanto ouve. Olhar nos olhos enquanto fala. É a melhor forma de resolver qualquer situação. Falar e ouvir, sem intermediários, sem edições. Com o coração aberto e a mente tranquila.

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Seremos Todos Individualistas?



  Queria muito escolher algo para me dedicar completamente. Acredito que a repetição, a busca, o aperfeiçoamento levam perto da perfeição, do inteiro. Mas são tantos os interesses e possibilidades, que me perco e acabo desconcentrando, achando sempre algo que pode me mover mais. Nunca soube se é melhor conhecer algo profundamente ou tudo, superficialmente. A segunda opção sempre me pareceu mais atraente, ampla e útil. Ainda tenho dúvidas e a dúvida é péssima conselheira. Mas é impossível não ter dúvidas no mundo de incertezas e escolhas que é a vida. Penso que seja um efeito, um mal (ou bem) do século.
   Dia desses conversava com o amigo Gustavo Lidtke sobre a rapidez com que tudo acontece, inclusive os relacionamentos, as paixões. Nos tempos de internet está se tornando comum começar e terminar algo por mensagem. Falta muito o “olhos nos olhos”, o abraço derradeiro de despedida, uma explicação, se é que isso existe, para o que era bom e não é mais. Fica mais fácil e pode doer menos não ter contato nenhum, não ouvir nem a voz do fim, como se o fim não existisse. Vai ver não existe.
   Em outra conversa, com outro amigo, daqueles que não dormem e te ligam porque sabe que muitas vezes você também não dorme, tomei uma bronca e ouvi duas horas de verdades só porque disse que voltei 10 casas no Jogo do Amor. “Como assim jogo? Você me decepciona tentando ser tão racional, quando sei que você não é. Não é possível que ainda não tenha entendido que não temos controle sobre tudo, que o orgulho não serve para nada, a não ser afastar quem realmente importa”.
   Voltar a nadar foi uma das melhores decisões deste ano. Talvez a única certeira. Porque enquanto nadamos, esvaziamos a mente, para depois reabastecê-la, livre de lixos existenciais. Para retornar tive alguns empurrões, de pessoas que encontrava por acaso, e incentivo de outras, que via sempre. É como dizem: “você precisa de motivação para começar, mas só o hábito te faz continuar”. No começo dói. Você pensa que nunca mais será o mesmo, não conseguirá fazer como fazia antes. A verdade é que não conseguirá mesmo. Nada será como antes, nem nadar. Os músculos demoram mais para ficar fortes, a resistência pode não ser igual, mas estar lá todos os dias (ou todos os dias possíveis) traz o progresso gradativo. E o mundo está tão imediatista que poucos tem a paciência da melhora gradual. Eu mesma sou muito imediatista, mas as bordoadas judiciais que tenho tomado, me fazem tentar pensar a longa distância. Posso ter tudo de novo. Posso fazer tudo outra vez. A única coisa que não quero nunca mais ter na vida é ilusão. Nem iludir. Com o tempo aprendemos que aceitar dói menos. Que quando mais nada pode ser feito e o desespero parece tomar conta do coração e da mente, ainda posso mergulhar e nadar e chorar. Encher os oclinhos de lágrimas sem que ninguém perceba. As lágrimas vão para a água e tudo flui, liquidamente. Liquidando o sofrimento.
    Eu já queria nadar de novo, principalmente para dormir melhor. Um dia encontrei a Nana (Luciana Uechi Martins), com quem nadei no Vasco da Gama, nos idos dos anos 1980. Agora ela é remadora, mas também nada e me disse para ir na Unimes/Fefis. Eu já tinha nadado lá há alguns anos, Dora fez nado sincronizado lá, Miranda deu suas primeiras braçadas lá. Fui conversar com um professor da Equipe de Competições, Matheus Nascimento, expliquei que sou uma nadadora/competidora, que não nadava há mais de três anos, que precisaria de paciência e que tentaria acompanhar os treinos. Fui recebida de braços (e quantos braços) abertos por toda a equipe e professores. Para completar, o coordenador é Fabrício Madureira, com quem dividi muitos treinos, no mesmo Vasco da Gama de Santos. Um dos nossos passatempos favoritos é lembrar como era dura a vida dos nadadores dos anos 80, quando as piscinas eram geladas e os treinos nunca eram inferiores a 8km por dia. E ai dos que reclamassem! Fabrício é mesmo um mestre, dia desses me disse, que quando está com problemas que considera muito grandes, vai para a emergência de algum hospital, fica lá por meia hora, assim percebe que seu problema não é tão grande assim. Que não é nada. Achei isso genial!
    Hoje é tudo mais fácil, mesmo assim parece difícil treinar 6 dias por semana. Quando me desanimo por algum motivo cotidiano, penso no pessoal que treina para triatlon e IronMan. Na equipe temos uma IronMãe, Rose Amorim, que treina 7 vezes por semana (entre corrida, ciclismo, natação, pilates e musculação), tem dois filhos, trabalha e nunca deixa de treinar, em diferentes períodos do dia. Nas conversas de vestiário que tivemos só penso como alguém é capaz de fazer seu tempo valer tanto. Eu sempre perguntando tudo, com essa minha vontade incontrolável de conhecer as pessoas, fico cada vez mais admirada. Ela sempre tranquila, com endorfina exalando por todos os poros, me mostra seus dedos dos pés machucados, suas unhas perdidas.
    No final da última competição, eu, absolutamente cansada, após nadar quatro provas quase simultaneamente, já estava planejando a viagem para a próxima (que acontecerá em Ribeirão Preto, 19 e 20 de setembro) e comentei com a Rose, no vestiário, sobre esse “bichinho da competição” que morde a gente. Então ela me disse que no seu último Iron Man, quando corria, com mais de 9 horas de prova, pensava: “Por que eu faço isso? O que estou fazendo aqui?”, tamanho era seu estado de fadiga e exaustão. Mas ao cruzar a linha de chegada, com suor por todo o corpo e sorriso indescritível no rosto, só queria saber quando seria o próximo.
   Em outro papo de vestiário, com a Ângela Couto, uma nadadora pequena de tamanho, mas gigante de performance, fiquei sabendo que fizeram uma pesquisa com nadadores e que chegaram a conclusão de que somos individualistas. Que esse negócio de ficar horas a fio olhando azulejos, sem falar com ninguém, pensando nos próprios movimentos e nos resultados, nos faz individualistas. Discordamos, porque outro fato é que os melhores resultados individuais, geralmente são dados em revezamentos, diga-se de passagem, a prova mais emocionante de uma competição. Ou talvez sejamos individualistas, já que é um conceito de afirmação e liberdade do indivíduo, diante de um grupo, sociedade ou Estado. Desde o Renascimento apoia-se a competição, que o homem pode tudo, se tiver vontade, talento e capacidade de ação individual. Talvez sejamos todos individualistas e a natação tenha nos preparado para esse mundo impessoal em que vivemos. Mas não vejo em qualquer grupo palavras como “só falta um”, “vamos lá”, “é pra acabar”, “amanhã tem mais”, “parabéns pelo ótimo treino”. Não vejo em qualquer pessoa o interesse genuíno pelo progresso do outro.

   O que move o atleta? Talvez seja o amor. O amor que acredito, que é o amor de desejo, não de necessidade. A atividade física é necessária para a saúde. Mas o treino de atleta não é. Ele ultrapassa o necessário. É uma vontade, um desejo de ser, de estar, de completar, de superar. O amor que sinto é o desejo de estar pelo prazer da companhia, porque me faz feliz, sem condições, sem exigir nada, apenas quero estar lá. E se for para construir algo junto, que seja por vontade e não necessidade. É um compromisso que queremos ter, mesmo abdicando de muitas coisas, não nos sentimos divididos ou incompletos. É uma escolha, é uma renúncia. É o amor que move cada braçada, passo ou pedalada.