sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Filha Rock e Cheia de Esperança

   Ontem vi minha filha, a última vez deste ano, ainda não sei qual será a próxima, preciso esperar uma manifestação do juiz. Ela estava linda com uma camiseta do ACDC, sua nova banda favorita. Nossa conexão é tanta que eu tinha justamente levado uma camiseta de presente para ela, do ACDC. Ela também achou a que levei mais linda, mas para não ficar com duas da mesma banda, pediu para eu trocar, pode ser do Nirvana ou Red Hot Chilly Peppers. Agora assiste The Big Bang Theory e é fã de Sheldon Cooper. Quem puxa aos seus não degenera! 
   Também contei para ela que estive na casa da Raquel, sua melhor amiga, que não vê há quase três anos. Falamos dela, dos irmãos, do pai, Fernando. Minha filha disse estar morrendo de saudade de Santos, de Boiçucanga, da praia, dos amigos, da vovó. Enchi seu coração de esperança quando contei que pedi férias para o juiz, porém, dei um sopro de realidade, ao explicar que fiz o mesmo pedido para julho e o juiz nem leu. Minha filha nada tem de boba e tão precocemente já entende os desmazelos judiciais. 
   Ontem também completou dois anos que minha amiga Adriana Botelho teve sua filha, Maria Clara, levada pelo pai, para Portugal. Pensei nela o dia todo, porque sei que passou um filme em sua cabeça sobre o último beijo, palavras, convivência. Pensei em como ficaria feliz por estar duas horas e meia dentro de uma sala fechada com suas duas filhas juntas e brincando, contando novidades. O que é pouco para mim, já seria tanto para a forte e corajosa Dri Botelho. E para a inocente Maria Clara...
    Minhas filhas brincaram bastante. Na despedida, Miranda chorou muito, como sempre faz, nada de novo. É sempre nesta hora que externa sua frustração. Já me acostumei e não choro mais. Sei que vou para a casa da minha querida Paola Miorim e terei momentos felizes. Falamos sempre de amor, amizade, assuntos nerds, viagens, família, passado e futuro. 
    Para pagar as passagens desta viagem, amigos meus, que nem sei quais são, fizeram uma vaquinha. Não tenho vergonha de contar isso, ao contrário, tenho orgulho pelas amizades que construí no decorrer da minha vida. Estamos todos no mesmo barco, alguns mais rápidos, outros mais antigos, mas somos da mesma falange de solidariedade e luta por justiça e igualdade. 

Um pedido do avô psiquiatra

    Um dia antes da minha chegada, o avô psiquiatra infantil, José Hércules Golfeto, ligou para minha advogada, para que ela conversasse comigo e pedisse para que eu retire o nome dele deste blog, pois tem perdido pacientes e está sendo muito prejudicado em seu consultório. Minha advogada, Lucélia Nunes, disse que também estou sendo prejudicada, com as edições feitas por seu filho Jonas Golfeto, que também chamou Rede Globo para filmar a busca e apreensão da própria filha. O psiquiatra disse que não adianta falar com o filho, não tem qualquer poder sobre ele, quando pede, responde que "a filha é minha e eu ajo do jeito que quiser". Ok, senhor psiquiatra, a filha é dele, mas a casa é sua e o dinheiro que paga todas as contas também! 
    Disse ainda, o Dr José Hércules Golfeto, que, se eu tirar o nome dele deste blog, será o início de uma convivência pacífica. Lucélia tentou mais uma vez fazer uma troca, tiro daqui, o filho dele tira do youtube. "Não, ele é inflexível". Isso é uma lástima, pois flexibilidade eu tenho, e muita! Mas fui obrigada a entrar na Justiça para que essas imagens sejam retiradas e olha que já faz uns meses. Pena um senhor que passa dos 70 anos se ver obrigado a recorrer na Justiça contra um simples blog. Lamentável alguém que lecionou por 30 anos na USP de Ribeirão Preto ter sua carreira borrada agora por um filho "turrão". Não, talvez esteja borrada por uma mãe, que também é jornalista, e que teve sua filha brutalmente afastada e levada para a casa desse avô. E enganada durante meses por esse mesmo avô. Sim, eu ligava e escrevia perguntando sobre o paradeiro de minha filha, mas José Hércules Golfeto, dizia não saber onde ela estava, que seu filho não falava nada. O tempo todo, estava na casa dele!
    O ambiente nesta casa não me parece saudável: um filho que beira os 40 anos, sustentado pelo pai e não respeita sequer um pedido do mesmo. Cabe a mim, achincalhada há anos, ser a pessoa submissa e boazinha, cheia de amor no coração, que fica penalizada com a situação em que esse médico psiquiatra se encontra. Submissa porque me submeto o tempo todo para ter qualquer tempo com minha filha. Boazinha porque chego mesmo a ter pena. Mas depois passa....
    Minha satisfação é saber que os pais que precisam recorrer aos psiquiatras infantis façam uma busca antes, não sigam apenas recomendações e títulos. Cheguei a procurar o Conselho Regional de Medicina para falar desse caso, mas como todo bom corporativismo, me disseram que age como avô e pai, não como profissional. Como se a pessoa deixasse de ser o que é. Como se fosse possível separar pessoal de profissional.
    Outra satisfação é que minhas palavras geram questionamentos. Assim tem que ser em todos os aspectos da vida. Essa coisa de ir na corrente e seguir a maioria é limitado, é emburrecedor. Por mais que eu tenha sido exposta em rede nacional, por mais que tenha sido difamada e caluniada em várias Varas de vários Fóruns, deixo aqui a dúvida. Se sou uma mãe tão horrível como crio sozinha outra filha? Como minha filha, mesmo tantos anos afastada, continua me amando tanto e tendo tantas referências minhas? Fica a dúvida. Segue a vida. E no próximo ano, seguem mais processos. Estou aqui aguardando!

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

A Competição em que Deram o Sangue

    Era o Campeonato Sul-Americano de Master de Natação, em Vitória/ES, em setembro de 1998. Tudo corria bem, cidade linda e sempre ensolarada, piscina boa, nossa equipe muito divertida e sempre com nadadores entre os oito primeiros. Para quem não sabe o master começa a partir dos 25 anos, com a categoria master A (25 a 29) e assim sucessivamente, até os resistentes veteranos que passam dos 90. Na categoria master conseguir manter o mesmo tempo já significa melhorar e quanto mais master, melhor!
   Tudo corria bem até que pelo alto falante recebemos a notícia de que o velejador Lars Grael, participando de uma competição na mesma cidade, tinha sofrido um grave acidente, corria risco de morte e precisava de doação de sangue. No nosso sul-americano havia cerca de 800 atletas e as arquibancadas foram esvaziando. As ambulâncias de plantão para nossa competição seguia lotada de atletas para o hospital. Os nadadores que não competiriam naquele período foram fazer a doação.
   Pouco mais de meia hora depois ouvimos no alto falante o agradecimento, pois o hospital tinha estoque de sangue para meses. Não apenas brasileiros, mas atletas de vários países foram doar sangue. Não fui porque nadaria e não tinha peso. O masculino foi em peso. Só depois soubemos da amputação, do acidente cometido por um “piloto” bêbado que ultrapassou a faixa que delimitava a competição no mar. Passado o susto e após a recuperação de Grael essa competição passou a ser conhecida como aquela em que os nadadores deram o sangue, literalmente. Algo trágico tornou-se um exemplo de solidariedade, de amor sem fronteiras.
   Mas além desse fato tão conhecido, outros aconteceram nessa competição, que me marcaram muito. No nosso hotel, tinha uma equipe da Argentina, adoro nossos hermanos latino-americanos e tenho muito carinho pelos argentinos. No café da manhã era uma confraternização linda. No segundo dia de competição acordei mais tarde, pois só nadaria no final da manhã e quando desci, havia acabado parte da refeição. O pessoal do hotel pedia desculpas, pois não sabia o que era uma fome aquática. Atleta come muito, mas os aquáticos comem mais! Só nesse dia me dei conta disso.
   O mais legal do master é que não há cobrança de técnicos por tempos bons e vitórias, a cobrança é nossa para nós mesmos. Por isso dá para sair, se divertir e conhecer um pouco da cidade, coisa que não acontecia até o Juvenil. Na noite anterior ao último dia de competição saímos para dançar. Uma das cenas mais engraçadas de feminismo que presenciei foi protagonizada pela minha linda amiga/irmã Flavia Vieira. Um rapaz do tipo folgado a puxou pelo braço e deu uma daquelas cantadas baratas. Muitas mulheres ficariam sem graça, algumas podem até cair nessa ladainha besta. Mas Flavia simplesmente o empurrou e deu um tapa na cara. E olha que a garota além de linda, era forte! “Como assim você nem me conhece e vem me pegando?”. Nossos amigos nadadores (sempre grandes e de ombros largos) se aproximaram para saber o que havia acontecido. Ninguém precisou defendê-la, Flavinha já havia dado conta do recado.
   Acordei exausta de tanto dançar e ainda me restava nadar 200m costas e um revezamento. Flavia acordou tarde de propósito para perder os 200m de peito, uma prova muito difícil, para quem não sabe. Preferiu se guardar para o nosso revezamento. Tentei me atrasar também, mas cheguei na hora em que distribuíam os cartões de balizamento para os 200 costas. Repetia que não teria pernas para completar a prova e eu era master A, a categoria mais disputada, com os melhores tempos. Estava morrendo de medo de dar vexame. Foi quando vi uma nadadora mais velha, umas duas categorias acima da minha, sem uma das pernas, alongando-se para a mesma prova. Mesmo com deficiência, ela competia com os “normais”.
   Me senti um monstro por repetir que não teria pernas para nadar. Pensei em Lars Grael na UTI. Olhava para essa nadadora tão compenetrada. Então corri para pegar meu cartão, estava na última série (a mais forte). Alonguei o quanto pude, coloquei minha toca e nadei fácil, gostoso, alongada. Não me preocupei com quem estava do lado, só queria nadar bem e sentir minhas pernas. Fiquei em sétimo lugar e dei o melhor tempo da minha vida, nem aos 15 anos dei tempo igual. Mesmo tendo competido e viajado tanto pela natação, essa competição me vem sempre na cabeça, quando penso em parar, em desistir ou no significado de presentes. Sangue pode ser o melhor de todos os presentes. Sentir dores nas pernas e braços é a dor mais desejada para quem perdeu um membro. Desde então, penso muito antes de reclamar dores físicas. E sempre lembro dessa nadadora, que nem sabe, mas tanto me incentivou. Depois da prova fui abraçá-la. Ela ficou em quarto lugar na sua categoria.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

14 Bis: A Prova Mais Difícil

  Chequei mais uma vez a mochila antes de dormir: dois oclinhos, dois maiôs, duas tocas, roupão, vaselina, toalha, agasalho e roupa para trocar. Deitada não conseguia dormir, respirava fundo e pensava no que nosso técnico, Guaracy de Moraes, disse em várias reuniões com a equipe durante a semana. Precisava nadar até o Largo do Candinho até o meio-dia, pois a maré virava e quem não chegasse era obrigado a desistir da prova.  Respirei fundo mais de mil vezes, tinha muita dificuldade em dormir antes de competições importantes, me faltava o ar. A maratona aquática 14 Bis tem 36 Km e eu tinha apenas 11 anos.  
   Acordei às 6h, tomei o café da manhã mega reforçado e segui com meu pai, que tinha alugado uma espécie de catraia para me acompanhar.  Se hoje o esporte amador deixa tanto a desejar no Brasil, pensem em 1981! Meu pai, também nadador, era a melhor pessoa para estar ao meu lado nessa prova.  A largada, na Base Aérea do Guarujá, foi pontualmente às 8h. Como ainda vivíamos na ditadura militar, antes houve bandeiras, hino nacional e militares falando.  No início tinha até helicóptero sobrevoando o percurso, aos poucos até os barcos foram minguando.
   Eu e minha amiga/irmã/companheira Rosane Mendes combinamos de nadar juntas. Ela nadava bem mais rápido do que eu, mas nosso objetivo era manter o ritmo e chegar o mais longe possível. Dentro do maiô eu levava alguns doces de leite. E parava para tomar sopa batida, com legumes e carnes, no copo, que pegava sem encostar no barco, para não ser desclassificada. Durante a prova os nadadores vão se afastando e não havia fiscalização que desse conta de todos, mas nós éramos tão disciplinados que seguíamos as regras, mesmo quando ninguém estava olhando. Minha meta era nadar sem parar até o meio-dia. Rosane, que era mais magra, começou a sentir muito frio (a água era gelada). “Vamos nadar mais rápido para esquentar”, eu repetia, com egoísmo, porque queria minha amiga ao meu lado. Mas não teve jeito, ela subiu no barco do meu pai e seguiu me apoiando de cima. 
   Passei do tal Largo do Candinho, já na Bertioga, antes da maré virar. Então relaxei e comecei a acreditar que poderia terminar a prova.  Meu pai, percebendo que eu estava bem e preocupado com os outros atletas, disse que iria um pouco para trás, porque nessa altura as distâncias entre os nadadores eram de 2 a 4 km. Me vi sozinha nadando num rio escuro, o céu cinza, montanhas enormes, pássaros voando. Nadava de costas para apreciar a paisagem, mas era tudo tão grandioso que me sentia mais sozinha. Meu pai não demorou mais do que 10 minutos, mas era uma eternidade. Me sentia tão mais segura só de saber que ele estava por perto.  Voltou meio triste porque o pessoal de trás estava desistindo.  O mais lindo no meu pai é que ele não torcia só por mim, incentivava a todos.  
  O pior momento foi quando nadei na margem e raspei a perna em mariscos. Já estava tão cansada que nem percebi estar perto da margem. Doeu, arranhou, sangrou e ardeu, mas a dor muscular já era tanta que a da pele foi pouca.  Perto das 17h meu pai deu uma volta de barco um pouco para frente e para trás, na volta me perguntou: “Você acha que consegue chegar?”. Sim, meus braços ainda rodam, minhas pernas batem e eu respiro. A chegada tornara-se meu objetivo de vida. “Então, filhota, se você completar será podium. Só três nadadoras continuam na prova”.  Foi uma injeção de ânimo! Por mais que o jargão diga que o importante é competir, receber troféus e medalhas é o reconhecimento do esforço, é a glória. 
   Lá pelas 18h, já escuro, enxergo as luzes da cidade. Faltava pouco, muito pouco. Então cheguei. Fui levada direto para uma ambulância, medir pressão, pesar, alimentar. Havia emagrecido pouco mais de 4 kg. Premiação, abraços, aplausos, entrevista. Me senti tão importante, no sentido das pessoas se importarem mesmo comigo. Meu pai não se aguentava de satisfação. Era como se eu tivesse realizado um sonho que ele não teve oportunidade de concretizar. Quando chegamos em casa passava das 22h, minha mãe estava preocupada. Explicamos que tivemos de esperar a premiação, mostrei meu troféu. Ela custou a acreditar que eu havia nadado 36km e ficado em terceiro lugar. Quase chorou quando viu minhas costelas à mostra. Era difícil para ela entender o metabolismo de atleta, já que não acompanhava treinos, nem competições. Em dois dias eu já havia recuperado meu peso. 
   Após esse feito senti que conseguiria fazer qualquer coisa, que minha mente não tinha limites e chegaria onde quisesse. Há muitos amigos nadadores que dizem não haver registro de alguém tão jovem completando uma maratona aquática dessa distância, que eu deveria procurar o Guines Book. Não sei se precisaria de tanto, antes bastava eu saber do que sou capaz. Só quis registrar aqui esse momento histórico da minha vida para que algumas pessoas saibam que não desisto fácil, que minha resistência é maior do que a maioria das pessoas.  O grande vencedor é o que volta quando todos pensam que fracassou.
  

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Obrigados a Tirar a Camisa

   As imagens de selvageria, mostradas à exaustão, entre os torcedores do Atlético Paranaense e Vasco, na última rodada do Campeonato Brasileiro, não são as primeiras, nem as décimas e, infelizmente, não serão as últimas. Mas isso acontecer nas vésperas de uma Copa do Mundo no Brasil é de estarrecer o resto do mundo, por isso repercutiu tanto e muito mais do que “brigas” até piores. Culpar a falta de efetivo militar não convence. A culpa é de quem chuta a cabeça de um ser humano já desmaiado, pelo simples fato dele torcer por outro time! Já não bastasse a intolerância religiosa, racial, sexual, ainda temos que conviver com a intolerância futebolística. Em que momento o futebol arte virou futebol morte? 
   Pode parecer um paradoxo, mas eu torci muito para a Olimpíada ser no Rio, porém achei uma tragédia anunciada a Copa também ser no Brasil. Simplesmente porque, mesmo sendo um esporte só, com menos países e atletas, a Copa é a maior competição do mundo. Porque não acontece apenas em uma cidade, mas em todo o País. Movimenta aeroportos, estradas, restaurantes e hotéis do País inteiro. E porque o futebol é uma indústria que gera bilhões de dólares todos os anos, além de lançar os jogadores celebridades.
  Gosto de futebol e gosto de ver jogo em estádio. A primeira (e única) vez que me senti uma torcedora oprimida foi num jogo entre SPFC e Santos, no estádio do Morumbi. Fui com os amigos Marcos Raia, Renato Rovai e sua filha Carol, na época com 10 anos, e Mario Serapicos, com seus dois filhos, mais uma amiga de Renato. Todos santistas, com exceção da amiga, são paulina, mas que de boa ficou na área reservada aos santistas. Já para entrar era algo opressivo: polícia montada, fila com proteção, entrada separada por policiais. Indicativo que os torcedores iam para brigar. Estranhei porque estava acostumada aos jogos na Vila Belmiro, sempre tranquilos, onde me sentia em casa. Sentamos na arquibancada e nos 2 minutos iniciais, eu ainda me habituando aos barulhos da torcida, tomamos o primeiro gol.
    O jogo terminou em 1x0 para o São Paulo. Saímos tristes pelas crianças não terem dado seu grito de gol, tão desejado. Seguíamos pela rua quando um bando de são paulinos nos cercou e exigiu que tirássemos a camisa. Rovai ainda tentou contemporizar: “Olha, estamos com as crianças”. Mas nos empurraram, nem se intimidaram com o tamanho do Marcos, que tirou a camisa de boa. Eles queriam que eu tirasse a minha camisa também. Relutei. “Dri, tira, esses caras estão loucos”. Tirei muito contrariada e porque estava com um top por baixo e seguimos sem camisa, ouvindo xingamentos esdrúxulos. Eu nem tinha filhas, mas ver a carinha assustada daquelas crianças, já tristes por não terem visto nenhum gol do seu time, me marcou de um jeito que nunca levei minhas filhas aos estádios. Afinal não provocamos, estávamos com crianças e tínhamos perdido o jogo, ou seja, corremos risco só de ir ao estádio!
   Quando vou na Vila Belmiro fico com a Torcida Jovem. Adoro cantar os hinos e gritos de guerra, ouvir a batucada e abraçar quem nem conheço. Jamais presenciei brigas, o máximo de agressão foi xingamento aos jogadores adversários, mas com uma certa dose de ironia e para tentar desmoralizá-los. Não sei se é porque a torcida santista é realmente mais organizada e menor ou porque consideramos a Vila Belmiro um Patrimônio da Humanidade. O fato é que nos orgulhamos da nossa história, dos vários “raios” que caem naquele lugar tão pequeno e iluminado.
   Não entendo como um País que não consegue resolver problemas de saneamento básico, educação e segurança, pode construir tantos estádios e investir tanto dinheiro numa competição. Estádios que ficarão abandonados em certas partes do País. Tem um que está parado, em Olinda (PE). Foi construído para receber seleções em concentração. Foram gastos dúzias de milhões, passou por vistoria de presidente e ministros e então, tudo parou. Agora o local abandonado é usado para tráfico de drogas e dependentes de crack. Olinda, cidade turística e muito linda, já foi piorada pela Copa do Mundo. Não quero ser apenas o País do futebol, quero ser o País da educação e cultura, da justiça e saúde. Quero ser o País de todos os esportes e por isso torci por ver uma Olimpíada no Brasil.
   Teoricamente a cidade do Rio de Janeiro já passou por mudanças e testes com o Pan Americano de 2007, que deve ter 20% da magnitude de Jogos Olímpicos. Mas na prática, os alojamentos dos atletas estão abandonados. O que me deixa relativamente feliz é que em 2016 tenho a esperança de assistir a natação e alguns jogos de vôlei. Futebol em Olimpíada? Não, obrigada, nem na Copa.
   Tive a honra quase inenarrável de conhecer Djalma Santos e fazer sua biografia, saber tudo da sua vida. O livro ainda não foi lançado, Djalma se foi em julho deste ano e não verá a obra, mas lhe mostrei o primeiro capítulo e ele sabia o que seria escrito. Em nossos encontros e horas incríveis de conversas e gravações eu viajava no tempo em que os jogadores amavam seus clubes, recebiam salários dignos, mas não eram milionários e jogavam mais com a arte do que com a força. Conversava muito com Djalma sobre a selvageria dos torcedores e ele, sabiamente, dizia que era uma catarse no lugar errado, do jeito errado, que não bastava mais gritar gol e cantar hino, que o futebol virou uma indústria de cartolagem. Sobre a Copa? Djalma só desejava ter saúde para poder ver alguns jogos nos estádios. Com ele, eu iria...

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Chutando a Porta do Juiz

   Tento não cair na mesmice de fazer retrospectiva do meu ano. Mas é inevitável na hora que deito para dormir e penso que há quase três anos fui afastada da minha filha e no processo, que é quase o de Kafka. Lembro que 18 de dezembro do ano passado nos vimos. Foi quando parei de escrever sobre o processo. Tive que prometer isso para a advogada da outra parte, a mãe de Danilo Murari, o outro advogado. Não lembro o nome da mulher, achei-a tão ruim, tão má, tão inescrupulosa, que prefiro nem lembrar. Nunca vi seu filho, afinal foi uma única audiência e a representante legal da parte foi a advogada mãe, mais experiente em mentiras e maldades.
  Essa mulher veio de avião de São Paulo para “mostrar” ao juiz porque eu não poderia ver minha filha. Havia um acordo amigável, mas como fazer acordo amigável com o inimigo? Só num sistema falido há audiência de conciliação para quem vive no litígio. É perder tempo, é perder vida. No fim, acho que a tal advogada sem escrúpulos levou uma bronca do juiz, que deve ter começado a perceber que o objetivo deles é levar esse litígio até minha filha completar 18 anos e me esquecer. O convívio, a intimidade, já não existem mais. A tal advogada ligou para a minha para saber se eu estava disposta a ver minha filha, por uma hora e meia. Claro! Há quase dois anos tento isso!
    Foi marcado o encontro no consultório do avô José Hércules Golfeto, também psiquiatra infantil. Cheguei no horário combinado com Miranda, que já falava aos amigos que a irmã tinha morrido, que chorava tanto ao ver as fotos da irmã, que precisei tirar todas da casa. Fotos só no álbum. O pai de minha filha chegou 20 minutos atrasado. Nesse tempo o avô me contou como a neta é ótima, inteligente, educada (como se eu não soubesse), que é tão parecida com a tia Raquel que na rua pensam ser mãe e filha. “Que bom! Acho a Raquel linda fisicamente, sempre desejei que minha filha se parecesse com ela fisicamente”. Contou que ela está acostumada com tudo, é feliz, faz terapia e tratamento para alergias. “Que alergias?” Alergias que desenvolveu naquela cidade seca e abafada, alergia de ácaros!
  O avô também me contou que seu filho faria uma cirurgia delicada para colocar uma prótese na uretra e sua filha, a que parece mãe da minha filha, estava com um tumor no estômago. Fiquei penalizada por Raquel, até porque ela é a atual referência materna da minha filha. E também porque estava com duas pessoas que amava muito e continuarei amando sempre, doentes de câncer. O avô tentou conquistar Miranda e lhe fez várias perguntas, sempre muito manipulador.
  Enfim Dora chegou! Eu não vi sua entrada. Mas Miranda viu e tremeu tanto que caiu no chão, chorando. Parecia ter visto um fantasma e era isso que a irmã significava ou significa para ela: uma sombra, um fantasma. Dora também se jogou no chão e eu fui abraçá-las. Como havia crescido! Minha filhinha estava quase do meu tamanho, de olhos inchados e vermelhos (alergia), com peitos, começando a ter espinhas. Ela só chorava e me dizia: “Mãe, te amo tanto, tanto!” e me pediu “por favor, para de brigar”. Não sei o que falam para ela, mas eu só tento vê-la e me impediam de todas as formas. Minha briga era essa. Mas não quis falar sobre isso. Dora me pediu para falar só de coisas boas e para deixar tudo do jeito que está. Ela me perguntava de tudo, de todos, de seus amigos, dos meus amigos. Dava dó de ver... o encontro aguardado por um ano, 10 meses e 8 dias foi testemunhado pelo avô e pelas advogadas das partes.
  Quando Dora levou Miranda ao banheiro, fui atrás. O pai dela aguardava na sala de espera. E do lado de fora do consultório, havia segurança. A “visita” de uma hora e meia durou apenas uma. Porque, como disse o próprio avô: “Meu filho sempre se atrasa”, mas precisou sair 10 minutos antes, para levar sua brilhante advogada ao aeroporto. Foi muito pouco, mas eu a vi. Fui obrigada a prometer que não escreveria mais sobre o processo para poder ver minha filha. Exigência da advogada, não do juiz, porque afinal, quem sempre mandou nesse processo foi a outra parte e seus advogados.
   Terminei o ano de 2012 com esperança, porque em janeiro já nos veríamos de novo, era o acordo. No dia 8 de janeiro deste ano eu estava novamente em Ribeirão Preto, com Miranda. Mas a outra parte não me deixou encontrá-la. Estavam todos em Ribeirão Preto, mas ele tinha colocado a tal prótese na uretra e estava em repouso. E daí? Eu não iria vê-lo, a “visita” não era para ele! Os avós não poderiam levá-la até o consultório? Não, porque ele quer dominar todos os passos, porque seu único poder na vida é o poder pátrio e ele é o dono da filha. Minha advogada pediu para me colocar no lugar do avô, que estava com seus dois filhos doentes e que já era um idoso. Ora, esse “idoso” alguma vez se colocou no meu lugar? E no da neta? Não, nunca, jamais, mas eu acabo sendo rodeada por pessoas que se parecem comigo. Pessoas que sentem amor, empatia, compaixão e que não mentem.
  Sobre os filhos doentes, acho que era uma mentira. A tal prótese deve ter sido um sucesso, pois a outra parte vive indo e vindo para São Paulo. O tumor da filha deve ter sido uma invenção para ver se eu colocava a doença neste blog. Não, senhor psiquiatra, jamais usaria uma doença como o câncer para atingir alguém. Logo se vê que essas pessoas não me conhecem,  nem meu caráter, apenas reproduzem o que o filho diz e pensa. Eu tenho consciência. Já esse pai foi capaz de inventar um tumor para a própria filha!
   Então passei 4 dias em Ribeirão Preto, ligando, tentando mudar o dia da “visita”, mas o avô, que me atendia, repetia roboticamente: “Eu não mando nada, quem manda é o Jonas!” Deve ser muito cômodo passar toda a intolerância, desajuste e falhas para o filho. Nem sei quem é o mais doente naquela casa. Infelizmente, a única pessoa que vi padecer de verdade, foi minha filha, com essa alergia que a obriga tomar injeções semanais para o resto da vida. Ou até quando morar naquela cidade.
  Após vê-la, falar com ela por telefone no Natal (um avanço incrível) e no dia 31 de dezembro, fiquei cheia de expectativa positiva para o próximo ano. Mas não poder vê-la de novo me causou um transtorno físico, emocional e psíquico imenso. Que só profissionais da saúde mental, como os avós psiquiatra e psicóloga, seriam capazes de imaginar (ou de tramar). Fui ao fórum de Ribeirão Preto com minha advogada, para dar entrada numa liminar, exigindo a “visita”, provando que, mais uma vez, a outra parte descumpriu o acordo. Lucélia, minha advogada, repetia o tempo todo para mim: “Isso só vai ser pior para ele, vai deixar claro para o juiz que sua intenção é proibir o contato entre mãe e filha”.
  Esperávamos a resposta no cartório. Eu com Miranda nos braços, minha bebê enorme, que tem peso e tamanho de uma criança de 7 anos. Quando leio “vistas ao Ministério Público” peço para Lucélia traduzir. “Significa que ele não decidiu nada, mandou para o Ministério Público”. Mas e o tempo? Quanto tempo isso demora? “Uns dois meses”. Meu estômago revirou, dentro de mim senti uma bola de fogo que subiu para o rosto, para o cérebro, desci as escadas com rapidez e sangue nos olhos. Lucélia tentava me alcançar equilibrando-se em seu salto alto. Parei na porta do juiz e comecei a gritar a plenos pulmões: “Eu quero minha filha! Me deixem ver minha filha! Me devolvam minha filha!” Repetia continuamente essas frases. Miranda, que sempre sofreu tanto, chorava e gritava, uma policial feminina veio buscá-la e a levou para tomar água, enquanto eu continuava gritando.
  O Fórum parou. Um policial, que acompanha a saga desde o início, me pediu para parar, pois teria de me dar ordem de prisão. Eu gritava na porta do juiz que não sabia qual era o pior juiz da Vara de Família daquele fórum. “Ninguém decide nada, inúteis. Eu quero minha filha!”. Quanto mais eu gritava, mais gente descia para ver o que estava acontecendo. O policial me pedia com delicadeza para que parasse, repetia que seria obrigado a me dar ordem de prisão. Respondia, aos berros, que me prendesse, pois assim eu chamaria a imprensa e mostraria o que esses juízes “não” fazem. Que quem decide não é o juiz. Eu chutava a porta e esticava meus braços para ser algemada, “pode me prender, mas continuarei gritando na cela”.
   Enfim, me acalmei, após mostrar minha revolta, minha indignação e o estado de loucura que o sistema judiciário deixa as pessoas. Sou só mais uma. Fomos para o carro, mas Lucélia voltou ao gabinete do juiz, para pedir “desculpas”. Voltou sorridente, porque o Fórum só falava nisso e os comentários eram “coitada dessa mãe, faz dois anos que vem aqui e não consegue ver a filha”, “nossa, ela até demorou para surtar”. O juiz reconheceu a morosidade do caso, porém nada de efetivo aconteceu.
   No fim pergunto, foi pior para a outra parte, pegou mal para ele? Não, pois demorou um mês para o Ministério Público responder que eu poderia visitá-la numa sala fechada, monitorada por psicóloga e mais 3 meses para a outra parte acertar o dia. Ou seja, o pai amoroso ganhou mais 4 meses de afastamento, distanciamento e sepultamento. Não há o que comemorar. Se a guarda se revertesse hoje, não haveria o que comemorar. Não fazemos mais parte uma da vida da outra. Os danos causados são irreversíveis. Em mim, em minhas filhas.
   Na retrospectiva desse ano há muitas perdas: perdi em janeiro uma das minhas mais queridas amigas, continuei perdendo pessoas que amava, perdi saúde, perdi dinheiro, faço parte da legião de profissionais desempregados, driblando o mundo para chegar o fim do dia. Vi minha filha 14 vezes nas visitas semanais monitoradas, até chegar à exaustão, até não ter mais dinheiro para as passagens. Não nos vemos desde setembro. Ela não gosta de falar comigo por skype, nem pelo facebook. Não há telefonemas. É melhor para quem mesmo inventar mentiras? É melhor para quem proibir? Só é melhor para mentirosos e tiranos. Vence quem mente mais. A Justiça permite. Vence quem tem mais dinheiro. O sistema judiciário adora! A melhor coisa que aconteceu neste ano é que voltei a frequentar mais o cinema, minha fuga da realidade. Porque qualquer história é melhor do que a minha.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

As Crianças no Matrix


   Uma pesquisa recente mostrou que as crianças de hoje são mais lentas e menos saudáveis do que as de 10 anos atrás. Hoje se cansam com mais facilidade e tem menos resistência. Quando começou a era digital já houve quem falasse que a evolução do ser humano seria perder a coordenação motora fina. Sem a necessidade de pegar em lápis e pincéis, apenas digitando teclas, as crianças já aprendem a ler e escrever em monitores. Se o corpo de um adulto sente as dores e danos causados por ficar muito tempo sentado com o pescoço abaixado e má postura, imagino o de uma criança, que está em pleno desenvolvimento, suplicando por espaço, descoberta de movimentos e limites físicos.
   Para mim é tão fácil entender que minha filha de quatro anos não precisa de tablet ou smartphone. Nunca nem me pediu de presente. Percebo a diferença da infância nesta década por experiência. Minha filha mais velha, hoje com 11 anos, conheceu vídeo cassete, discos de vinil e rolos de filmes. Fez a transição do manual para o digital. Eu tinha vinis e CDs e muitos filmes. Miranda, como sua turminha, já nasceu digital e sabe procurar suas músicas e vídeos no youtube, mesmo sem saber. Mas faz isso no meu computador, quando eu deixo. Ela não é menos saudável e resistente do que as crianças da década passada, ao contrário. Mas também não tem brinquedinhos eletrônicos como os bebês desta década.
   O que tenho percebido neste mês de dezembro, quando o consumismo é incentivado, motivado e exigido, é que a maioria das crianças não pede bicicletas, patins, pranchas e skates. Preferem videogames e tablets. As crianças são induzidas a ficar em casa, sem movimentos físicos, por horas, em jogos virtuais, conversas virtuais e acabam achando mais divertido, mais familiar, preferem os jogos aos amigos. É mais cômodo e seguro para a maioria dos pais. Chegam do trabalho e não precisam jogar bola, correr, andar, jogar Banco Imobiliário, Monopoly, dominó, quebra-cabeças. Agora há uma babá eletrônica ainda melhor do que a televisão, porque pode ser levada em todos os lugares: restaurantes, supermercados, praias, viagens. Os filhos ficam por horas em silêncio e ocupados, no seu Matrix particular.
   Além de ver no meu cotidiano, também acompanho matérias sobre o uso dessas tecnologias por crianças tão pequenas. A verdade é que não sabemos o quanto essa rotina afeta suas mentes e emoções, só saberemos quando crescerem. Daqui 15 ou 20 anos, quando essas crianças forem os jovens da vez, entenderemos, por meio de sua socialização, interação, hábitos cotidianos, no que deu viver a infância no Matrix. Mas, fisicamente falando, temos um prognóstico. E já deu para perceber que não é legal. Se o objetivo da vida é ter saúde e felicidade, não é inteligente promover uma sociedade fechada em casas e condomínios. Condenada ao isolamento, medo da violência e vários tipos de fobia, que acabam detonando transtornos psíquicos. Uma sociedade cercada de tecnologia, mas que não aguenta uma caminhada, caso precise fazer compras diretamente no mercado, um dia que cair o sistema. Como ser feliz e ter saúde sendo sedentários já na infância?
   Enquanto eu escrevo, minha filha Miranda está com amigos entre quatro e 10 anos, brincando de bonecos. Entre eles não há essa de brincadeira de menino ou menina. Os meninos são ótimos exercitando-se ludicamente como pais. Cuidam das filhinhas, vão para o trabalho e sabem combinar as roupas. Miranda é uma ótima zagueira e seu amigo Gabriel, também com quatro anos, mais magro e rápido, chuta a gol que é uma beleza. Na piscina todos sabem mergulhar e bater pernas. Minha filha tem tanta energia que acabo reclamando da minha estafa em acompanhá-la. Tem gente que acha que devo levar ao psicólogo, porque “ela está sempre querendo fazer coisas e tendo ideias para se distrair”. Em minha defesa digo que, se levá-la irão receitar ritalina (a droga preferida entre os psiquiatras infantis). “Mas não seria bom ela tomar e ficar normal como as outras crianças?”.
   A definição de normalidade é realmente relativa. Na minha concepção de infância feliz, há curiosidade, experimentação e vontade de fazer coisas! A criança pode se distrair com tinta, massinha, giz de cera e lápis de cor. Mas um tablet é mais asséptico. Não suja as mãos, roupas, mesa e chão. E a criança se distrai por mais tempo e sozinha. Não desejo criar minha filha como uma “excluída digital”, até porque eu gosto muito de usar e conhecer novas tecnologias, o que desejo é criar um ser saudável. Tenho conseguido e percebo muitos pais com a mesma consciência. Sinto-me privilegiada em morar nesse espaço e conviver com crianças não contaminadas pelo consumo tecnológico. Preferem brincar e correr e todos os dias ficam muito suadas, com alguns arranhões. É uma vida de condomínio, com câmeras por todos os lados, elevadores e regras da boa convivência. Nas cidades não há mais como brincar nas ruas, pois a rua é dos carros, não das pessoas. Resta o condomínio e continuar me considerando uma pessoa de sorte.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

À Espera de Um Induto


   Fiz muita transferência de presos e inaugurações de presídios quando trabalhei na assessoria do governador Mario Covas. Prisões e hospitais parece ser uma espécie de sina na minha vida, que agora entendo melhor, sabendo que tenho a tal casa 10 em câncer, mas isso é papo de astrologia e esse texto pretende falar de prisões e presidiários.
   Nos tempos de Palácio dos Bandeirantes, a equipe de jornalismo cobria todos os eventos, mas nos dividíamos em algumas áreas, para ganhar tempo e informação. Coube a mim Segurança Pública, Administração Penitenciária e Meio Ambiente (que pode parecer leve, mas era só bucha também). Eu já tinha alguma experiência como repórter policial na Folha da Tarde, conhecia jargões e o funcionamento do sistema, por isso foi algo espontâneo. A grande diferença é que antes eu ia atrás da notícia, no governo, passei a ser a fornecedora de notícias, além de administrar conflitos e acalmar repórteres sedentos por revelações bombásticas.
    Conforme aconteciam as inaugurações das penitenciárias no interior do Estado de São Paulo, começaram as transferências de presos da Capital, que cumpriam penas em delegacias lotadas, por falta de presídios. Numa delas, na DP do Paraíso/Capital, uma repórter vomitou ao entrar na cela vazia. Havia fezes e urina por todos os lados, o cheiro era mesmo de causar náuseas, mas eu já estava acostumada a prender a respiração antes de entrar. Prendia por mais de um minuto, outra dádiva que a natação me deu: muito fôlego. A repórter passou mal não só pelo que viu e cheirou, mas também por imaginar como 80 presos viviam numa cela para cinco pessoas.
  Na época muitos reacionários reclamaram pelo dinheiro gasto com penitenciárias tão novas, colchões novos e tudo tão limpinho para aquele monte de “bandido”. O que muita gente não sabe é que nem todos que vão presos são bandidos. Há tantos erros em julgamentos, há tanta gente que vai presa sem ser julgada e só após o julgamento é revelada sua inocência. Mas daí a pessoa já ficou tanto tempo presa, que deixa de ser inocente, aprende a odiar, não tem mais jeito.
   Acompanhei a última “leva” de presos do Carandiru. Ao olhar aqueles homens eu sentia medo de alguns, pena de outros. Em alguns eu via a materialização do mal. Em outros eu via sofrimento e dor. Depois de esvaziado, entramos no Carandiru e havia uma energia tão pesada que tive dor de cabeça por dois dias. Numa das minhas idas para o interior, quando fazia três matérias por dia, em três cidades diferentes, pensei que era uma inauguração de penitenciária, quando tem prefeitos, políticos e alta sociedade, então fui de saia, salto e meia calça. Mas era uma vistoria do funcionamento, eu era a única mulher entre jornalistas, administradores, carcereiros e fotógrafos. Já estava acostumada a ser a única mulher em muitas ocasiões, mas não numa prisão. Meu “modelito” estava inadequado, deveria ter ido de jeans, tênis e blusa, mas não havia como voltar e trocar no hotel. Minha pauta era sobre como estavam os condenados trabalhando na panificadora do presídio. Alguns evitavam me olhar, nenhum me desrespeitou. Em alguns minutos já falavam sobre como suas vidas melhoraram, podendo trabalhar, sonhando em sair dali já com um ofício. Que era mais fácil dormir, porque estavam cansados após o dia de trabalho. Nas delegacias dormiam sentados, às vezes, em pé. Teve preso reclamando, mas me pediu para não colocar na matéria, porque ficou longe da família. Nunca dá para agradar a todos.
   Quando chegava o Natal, nosso plantão era dobrado, porque havia o induto, muitos presos não voltavam e, invariavelmente, tinha rebelião na FEBEM, agora Fundação Casa. Ninguém era reabilitado naquelas condições. Claro que eu não gostava de ver aqueles meninos queimando colchões, mas entendia a revolta deles em ficar preso num lugar insalubre daqueles, para se reabilitarem. No Natal, os meninos ficavam mais revoltados. Queriam estar com a família, queriam uma comida decente.
   Penso que as prisões não melhoram ninguém, é uma punição severa, para aprender que não se deve roubar ou matar e, ao sair de lá, não repetir o erro. Mas em liberdade não conseguem emprego, tanto faz se mataram ou se roubaram uma cesta básica, estão marcados para sempre. Não importa o delito, importa que passou pela prisão e aprendeu a ser bandido. Daí, essa gente que passa droga na esquina, que sobe o morro para pegar a quantidade que o playboy pediu, vai presa, é espancada, fica lá uns anos até o julgamento. Mas essa mesma gente vê um flagrante do helicóptero de deputado, lotado de cocaína, dentro da fazendo do deputado, mas nada acontece, o deputado não sabe de nada. Dessa vez pode responder o processo em liberdade. Isso é ou não é para revoltar?
   Daí, o preso que está lá cumprindo pena há anos, lutando por uma condicional, por um regime semiaberto, vê um político que consegue em dias mudar o regime e na mesma semana um emprego como gerente de hotel, recebendo 20 mil reais mensais. Isso deve revoltar muito o preso comum. Daí a gente vê alguns políticos sendo condenados, enquanto outros estão ilesos e operantes. Isso me deixa bastante indignada. A Justiça funciona para alguns, não para outros.
   Dizem que todos merecem uma segunda chance. Eu não tive a minha. Serei sempre a mãe que perdeu a guarda da filha, marcada como uma presidiária. Logo teremos mais um induto de Natal. Será que terei meu induto? Será que o juiz será tocado pelo espírito natalino e vai pensar “poxa, a menina passou 2 anos longe da mãe, nunca mais viu os antigos amigos, perdeu o vínculo com a irmã, bem que podia passar o Natal com a mãe e a irmã”. Basta assinar um papel! Fico esperando meu induto de Natal. Mas nessa época vem junto o recesso judiciário, que deixa tudo parado. O que poderemos esperar deste País? O que mais eu posso esperar?

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Justiça Tardia Não é Justiça

Sempre tive um refúgio para me esconder do mundo, fugir da realidade e conhecer outras histórias: sala de cinema. É um programa que podemos fazer sozinhos, mas é tão bom ter amigos quase tão cinéfilos quanto eu para poder comentar o filme depois. Tenho sorte por tê-los em todas as fases da vida. No início da adolescência e um bom tempo dela tive Renatinha (Renata Morales Banjai) e Beth Yumoto, no geral, meus amigos da natação adoravam ir ao cinema. Paola Miorim também era das minhas, entre tantos, vimos juntas O Exterminador do Futuro e a cada susto, apertava seu braço de um jeito, que deixei vermelho. Meu querido André Corrêa, que após mudar-se para São Paulo, passava os finais de semana em Santos e víamos vários filmes em dois dias. Com o Leo ia ao cinema duas vezes por semana, sempre à noite, porque eu estudava de manhã e treinava à tarde. Mas a fase mais viciante em cinema foi com Carla Stoicov e Fábio Diegues. Além dos cinemas comuns, dos filmes em casa, batíamos ponto toda semana no Cine Posto 4, em Santos. É o cinema mais singular que conheço. Fica na areia da praia, tem 30 lugares e só passa filme muito bom, daqueles que você nunca vai ver nos Cinemarks. Não que eu não frequente Cinemark, adoro filmes de ação e ficção também, aliás, cinéfilo gosta de todos os tipos de filmes que sejam bons. E relembrei tudo isso porque ontem fui ao Posto 4 com minha amiga querida, Marcia Abad. Ela queria me alegrar e sabe o quanto gosto de filmes, não lembrava o título, mas sabia que era um filme espanhol muito bom, sobre a época da ditadura do general Franco. Fugimos do calor e nos enfiamos na pequena sala escura. A Voz Adormecida começa tenso, sabemos que é trágico. Uma das protagonistas me parece tão familiar, na terceira cena vejo que a familiaridade é com minha amiga Ana Paula Assumpção, que nunca esqueço. Os olhos, o olhar... essa protagonista tem uma irmã presa política, grávida. O filme me fez quase chorar em quase todas as cenas e escorrer lágrimas em específicas, muito mais pelas semelhanças entre tantas histórias que vivi e vejo acontecer. Há injustiça o tempo todo. A presa está a espera do fuzilamento é ateia e comunista. Tentam obrigá-la a beijar os pés de uma estátua de Jesus, o padre cruel afirma que ela não terá salvação após a morte, as freiras também são cruéis com quem não acredita em deus, tudo é tão cruel. Sua filha nasce na cadeia e depois ela é encaminhada para a cela das mães, lotada de crianças que crescem nas prisões. Me lembrou tanto os tempos do visitário público, em que eu ficava numa sala lotada de pais e filhos (eu era a única mãe aos sábados). A última vez em que amamenta a filha, por piedade de uma carcerária, me doeu tanto porque me fez lembrar a mãe que amamentava o filho no tal visitário público, um bebê, arrancado da mãe por um pai que, certamente, não o amava. Mas o que mais doeu foi o julgamento. Um juiz arrogante, que exige ser chamado de excelência. São excelentes em que? Conheço excelentes atletas, profissionais (nenhum deles é juiz ou promotor), mães, pais, filhos, alunos, pessoas, mas ninguém é chamado de excelência. O juiz manda todos para a pena de morte. Apesar de não haver mais ditadura, nem pena de morte no Brasil, os juízes continuam condenando várias pessoas à morte, todos os dias, com suas demoras que não são cobradas, com suas decisões que não são tomadas, com seu passar de olhos em cima de processos, sem aprofundamento. Me senti tão parecida com as irmãs Hortência e Pepa. Uma sofre tortura psicológica, a outra física. A Justiça arrancar um filho da mãe é a maior das torturas, física e psicológica. Dói tudo, tudo mesmo, é como uma falência múltipla dos órgãos. No fim, como já disse, nem culpo a outra parte, uma pessoa tão mentirosa que acaba acreditando na própria mentira, nem seus pais, que apoiam tanta insanidade. Como pais talvez queiram esconder o próprio fracasso. Nem os advogados sem ética que escrevem qualquer coisa que o cliente fala, sem prova alguma. Afinal é trabalho deles defender o cliente e recebem o quanto pedem por isso. Mas os juízes e promotores... ah, esses são repletos de culpa, estão lá para defender a Justiça, são pagos pelos impostos que nós pagamos, mas o que fazem? Deixam os processos empilhando e dizem não ter tempo, é o sistema. Que façam algo para mudar essa situação! Quando essa ação foi levada para Ribeirão Preto caiu justamente com o juiz Ricardo Braga Monte Serrat, um que meus colegas jornalistas de lá são loucos para denunciar, tantos são seus casos duvidosos. Esse juiz e um promotor leram um monte de absurdos sem provas que a advogada da outra parte colocou (que minha filha passava necessidades básicas, privações, fome, não tinha cama, que eu troquei seu nome, não tinha vida social, que eu morava de favor em casa de estranhos) e me proibiram de ver minha filha! Me chamaram de mãe nociva! Então coloquei lá todas as provas de que tudo aquilo era mentira. Mas minhas provas eles nunca leram. Estão lá há quase três anos esperando para serem lidas. A declaração emocionada da minha amiga Claudia Albuquerque, mãe da Raquel, está lá. Mas agora a Claudia não está mais aqui para ser testemunha na audiência. Está lá no processo, sem provas, que me droguei a gravidez inteira e por isso minha placenta descolou. Mas minha prima Keila, que ficou comigo nos últimos três meses de gestação e vivenciou tudo que se passava naquela casa, cozinhando para mim, tocando e cantando, não está mais aqui para testemunhar. Me senti como as senhoras presas do filme, que nunca participaram de rebelião nenhuma, que nem eram comunistas, algumas até acreditavam em deus, que tinham provas nunca vistas por juiz nenhum e que eram enviadas ao pelotão de fuzilamento. As provas delas não importavam. Queriam apenas calar a sua voz, como alguns juízes, que me mandaram parar de escrever nesse blog. Justiça tardia não é justiça. A sensação ao sair do cinema, em silêncio, ao lado da minha amiga, também tão tocada pelo filme, é que nada mudou. Só mudaram os generais e juízes, mas as atitudes são as mesmas.

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Políticos Presos, Presos Comuns


    Custei a decidir escrever sobre os políticos do PT presos. Primeiro porque isso pode me render mais antipatizantes, segundo porque sei que falta muita verdade política e justiça nesse País. Mas não posso deixar passar mais esse momento histórico, em que vejo cidadãos comuns e honestos discutindo ideologias políticas e defendendo indefensáveis, amizades sendo desfeitas. Dia desses, meu amigo virtual, Marcos Matias, que pensa de forma anárquica e apartidária como eu, posicionou-se muito bem ao dizer que a indignação popular contra o PT é maior justamente porque era o partido da mudança, que esfregava o dedo na cara dos corruptos, então, nossa sensação de “somos todos otários” é muito maior.
    Falo por mim, que mesmo trabalhando na assessoria de Mario Covas em 1998, votei em Lula, e não em FHC, para presidente. O voto era secreto e eu não tinha contrato com o PSDB e sim com o Governo do Estado de São Paulo. O que me revoltou em FHC foi seu golpe da reeleição. Ele aprovou para se reeleger. Covas seria o candidato do partido, mas FHC quis manter-se no poder.
  Votei em Lula também em 2002 e confesso que meu processo de depressão foi também decepção política. Fiz uma aplicação de 20 mil reais na Previdência Privada, após campanha do Governo em seus benefícios, entre eles, a isenção de impostos, já que temos um rombo na Previdência e, em menos de 10 anos, não haverá dinheiro para pagar pensão de tantos aposentados. Conversei com meu gerente e fizemos um projeto de longo prazo. Eu não mexeria nesse dinheiro até minha única filha na época, Dora, então com menos de três anos, completar 18. A ideia era pagar todos os custos de sua faculdade, caso não passasse numa pública, ou comprar um pequeno apartamento para ela, caso não pagasse faculdade. Mas o Governo deu um golpe, entre Natal e Ano Novo, quando as pessoas estão viajando e não ligam muito para economia. No início do ano, meus 20 mil, viraram 17! Esse dinheiro já foi para advogados, mas essa é outra história. Imagino que o futuro universitário de minha filha Dora estará garantindo por ela mesma ou pelos avós que mantém sua guarda de fato.
    Superada essa decepção, estava no Chile, em 2005, com meu querido amigo e jornalista Francisco Javier Cabezas, quando vimos notícias de dinheiro em cueca e outras histórias tão estapafúrdias que pareciam inventadas. Cheguei a escrever para minha amiga Carla Stoicov, perguntando se era isso mesmo. Não adianta, por melhores que sejam as intenções de políticos, o brilho do poder cega, o sistema corrompe.
  Daí vem a turma petista dizer que o mensalão foi para o plano de governo (de poder) e não para enriquecimento próprio. Ora, desde quando isso é motivo de defesa? Pior falar que o rombo do mensalão é bem menor do que o da Privataria Tucana e tantos outros escândalos! Quero mais é que todos os corruptos, de todos os partidos sejam condenados a devolver aos cofres públicos o que foi roubado.
   Não acredito que Joaquim Barbosa seja um herói, se ele manda prender, faz sua obrigação. Quero que condene outros também. Não acredito em sua aclamação para presidente, ainda mais depois da capa da revista Veja o transformando em salvador da pátria. O que lembra muito o que a mesma revista fez com o caçador de marajás, Fernando Collor, o político que, do nada, transformou-se no primeiro presidente eleito por voto popular, após a ditadura. E deu no que deu.
   Vejo também muitos jornalistas criticando Joaquim Barbosa porque trata mal a imprensa. Ora, se ele fosse midiático, fizesse média com a imprensa, daí sim, eu desconfiaria muito dele. Se ele trata mal é porque não tem medo de ser criticado por meus coleguinhas. Também acho muito perigoso jornalistas serem partidários ao extremo. Acabo desconfiando deles. Vejo jornalistas sérios, defendendo o PT até os dentes. Isso acaba com a credibilidade e imparcialidade tão necessárias ao profissional ético.
    Agora, o que me fez querer escrever sobre esse assunto das prisões dos políticos petistas é o tratamento dado aos presos. Mais de 20 deputados foram visitar José Genoíno fora da data de visita. Isso seria motivo para uma rebelião nacional de presos comuns! Um perigo nacional! Quantos presos morrem por falta de atendimento nas cadeias? Não seria esse momento ideal para uma intensa reflexão do Governo Federal para reestruturar o sistema penitenciário?
  Quando trabalhei com Mario Covas cobria Segurança Pública, Administração Penitenciária e Meio Ambiente (só bucha). Inauguramos várias penitenciárias no interior do Estado para desafogar as da Capital e as delegacias, que acabavam fazendo as vezes de cadeia. Não dava tempo. Transferíamos os presos e logo as delegacias estavam lotadas. Muitos presos nem tinham sido condenados, esperavam o julgamento nas celas. Ficavam dois, três anos na cadeia e no fim muitos eram inocentes! Mas era tarde, Justiça tardia não é Justiça, já tinham a revolta dentro deles, já tinham aprendido a ser bandidos de verdade. E para completar, vou repetir em parte o que escreveu hoje meu amigo Marco Bola, que também pensa muito parecido comigo. “Antes Genoíno lutava para provar que era inocente, agora para provar que está doente, mas sua agenda, até antes da prisão, diz o contrário”. Ainda tem muito para escrever sobre presos, prisões, penitenciárias, julgamentos e corrupção. Talvez termine com um livro.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Minha Consciência Negra


    Dia da Consciência Negra. Um feriado, feito para a reflexão e debate, não apenas para viajar e ir à praia. Mas vejo em redes sociais pessoas pedindo o Dia da Consciência Humana, amigos negros, inclusive. É fato que o Brasil é um País racista. Segundo pesquisas, 95% da população entrevistada não se diz racista, mas 90% conhece um racista, o que revela a hipocrisia da nossa sociedade. Também tenho visto campanhas contrárias ao sistema de cotas, com foto de criança branca, suja e pobre. Particularmente, acho que a cota racial legitima a existência do racismo, deveria ser sim por baixa renda, o que daria na mesma, porque a maioria miserável do País é negra ou parda. Por outro lado há uma dívida social com os negros desde a época da escravidão.
    Mesmo após a Lei Áurea continuaram sendo escravizados, porque foram libertos, mas analfabetos, sem posses, sem emprego. Restou construir barracos nos morros e iniciar o “sistema habitacional” das favelas. Os presídios tem maioria negra, mas não porque negros são mais bandidos e sim porque há mais negros no Brasil e porque a desigualdade social os faz mais pobres. No colégio o aluno que tirava notas mais altas do que as minhas era um negro, gordinho, de óculos, Marcelo. Não sei por onde anda, mas imagino que tenha chegado à universidade por mérito. Era tão dedicado aos estudos! Um nerd que me dava até raiva de tanto que o menino sabia! Gostava tanto dele, estudar com ele e ver seu boletim enfeitado de 10. Quando eu ficava “magoada” por ele ser melhor aluno do que eu, ainda me consolava, lembrando-me de que eu era atleta e não tinha tempo de estudar tanto quanto ele.
    Fiz o colegial em escola particular, raros os negros. Como o ensino público estava ficando cada vez pior, no vestibular, a maioria que passava, era branca. Havia apenas uma negra no curso de jornalismo, e nem era da minha classe. Fiquei muito feliz quando minha professora de matemática da 7ª série do ginásio me pediu para adicioná-la no facebook e ainda me perguntou se lembrava dela. Ora, como esquecer a primeira recuperação da minha vida? E como esquecer uma professora excelente? A única professora negra que tive? Zenilde Carmo era exemplar e representava a esperança para os negros e brancos de baixa renda, que desejavam chegar ao nível superior.
    Dia desses, conversando sobre arte e racismo com meu primo ator, Osvaldo Jr, chegamos à conclusão de que nos Estados Unidos há menos racismo do que no Brasil. Lá, quem é racista assume, há Estados declaradamente racistas. Mas no cinema norte-americano vemos negros em filmes por serem atores, interpretando qualquer profissional, em qualquer papel. Claro que há filmes em que é necessário ser negro, não dá para um branco fazer o Nelson Mandela. Já no nosso País há tantos bons atores negros, escalados apenas para fazer escravo, bandido, empregado subalterno ou o negro que sofre preconceito. Li uma entrevista com a linda Taís Araújo, dizendo que só sentirá que não há racismo quando receber um roteiro que não seja “mulher negra”, pois só é escalada por ser negra.
   Houve uma época em que fiz várias matérias sobre adoção, no jornal Diário do Grande ABC. A estatística era terrível: pais adotivos ficavam mais de 5 anos na fila, esperando uma menina, branca, recém-nascida. Enquanto isso, os meninos negros, com mais de 3 anos, não tinham outra escolha a não ser crescer nos orfanatos, para depois serem encaminhados à FEBEM. Não tinha filhas e nem queria ter, biologicamente, na época. Meu desejo sempre foi adotar uma criança após os 40 anos. Por ver tanto órfão negro decidi que adotaria um menino negro, com mais de 3 anos e uma menina negra, com mais de 5. Mas o destino me deu duas filhas incríveis, em situações inversas, que anularam, no momento, a realização desse desejo.
    Sou racista ao contrário. Se tiver que empregar alguém e o currículo dos candidatos for idêntico, mas se entre eles houver uma mulher negra, tem minha preferência. O motivo é simples: os obstáculos foram muito maiores para quem tem “cor”. Mulher de “cor”, então, além do racismo, sofreu machismo. Não que um médico, jornalista ou advogado negro tenha mais valor, mas, provavelmente, esses profissionais valorizam mais suas vitórias. Há mais receio em perder a vaga. Conheci minha atual advogada, Lucélia Nunes, na fila de protocolo, no Fórum de Ribeirão Preto. Quando chegou minha vez, não sabia se era para distribuir ou protocolar. Tão pouco o atendente sabia me dizer. Mas uma mulher elegante, bonita e jovial me pediu licença, pegou a papelada da minha mão e resolveu tudo. Agradeci e segui para o café. Mas fiquei olhando para ela e voltei. Perguntei se era advogada e pedi seu cartão. Ela até pediu desculpas por ter se metido na história. Mas o que me encantou foi justamente sua vontade de fazer a coisa andar. Sim, Lucélia é negra. Não nego que sua cor me fez admirá-la mais.
   Não cabe aqui sua história pessoal, mas as dificuldades que passou foram infinitamente maiores do que a dos advogados brancos. De todos os advogados que tive até agora, foi a que menos me cobrou honorários. Nem cobra estacionamento e gasolina, quando me leva ao Fórum. Quando parei de contabilizar os gastos com esse processo, já passava de 50 mil. Para ela paguei tão pouco. Espero um dia poder pagar tudo que faz por mim.
   Para finalizar minha consciência negra, conto que sofri na pele branca o preconceito por me relacionar com um negro. Conheci Jamiro em Búzios (RJ), dia 29 de dezembro de 2005, assim que cheguei na rodoviária. Ele, mais o restante da banda Nova Semente, foi nos buscar (eu e amigas). Gentilmente carregou minha mala. Estávamos hospedados na mesma casa e viajei para romper o ano lá, queria começar 2006 positivamente, já que 2005 foi marcado por perder a guarda da minha filha, meu primeiro Natal sem nem falar com ela. No final da tarde saímos todos para tomar cerveja num barzinho próximo. Uma amiga que sente atração por homens negros, já tinha me falado dele. Eu nunca tinha nem beijado um afro descendente. Muitas pessoas ao redor da mesa, músicos cariocas, mineiros e argentinos. Mas nas idas e vindas ao balcão e banheiro, ficamos sentados um ao lado do outro. Não me interessei por ser negro, mas por ser lindo, músico, sensível e muito educado. Na volta já nos beijamos embaixo de um céu limpo e estrelado. Nunca ficamos juntos de fato, mas nunca nos separamos também. Passamos às vezes mais de um ano sem nos ver, mas estamos sempre juntos em pensamento e amizade. Também no amor. Aquele tipo de amor familiar, sem posse e livre.
     Sua leveza me inspira, sua música é linda. Sempre o deixo livre e por isso, volta. Quando andávamos de mãos dadas pelas ruas, percebia olhares de contrariedade, como se aquela cor sujasse minha brancura. Como se fosse nojento uma branca dormir com um negro. Depois desse réveillon, Jamiro veio ficar dois meses comigo, no Guarujá. Já havia falado dele para minha mãe, mas antes de apresentá-los, tive de dizer que era negro. Infelizmente, tenho uma mãe que não se diz racista, que acha negro lindo, por isso não deveria se misturar com branco e ter filhos mulatos. Ironia ou não, ela tem uma neta de genitor árabe, com a pele muito escura e linda. Miranda passaria fácil por filha de Jamiro. Adoraria que tivesse sido. O amor, a amizade e a inteligência não tem cor, nem raça.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Somos Demasiadamente Humanas

Dia desses tive uma surpresa que me deixou muito emocionada. Era uma declaração de amizade da minha querida Kátia Cândido, uma amiga que tenho desde o primário. Na mensagem diz estar triste por saber como me sinto porque isso é tão ela e, resumidamente, lembra de como eu contava histórias incríveis dos meus finais de semana, sempre viajando e competindo, diz que alcançou minha intelectualidade. Considerava-se uma suburbana e meu mundo era diferente. Acontece que eu também vivia no subúrbio e estudava na mesma escola municipal Dr Napoleão Rodrigues Laureano, na periferia do Guarujá, que, para minha sorte, tinha uma piscina de 25 metros e que me fez conquistar muitas aventuras no braço, conhecer lugares nas pernadas e ampliar meu leque de amizades eternas. Talvez Kátia não enxergasse o seu real valor e visse em mim uma coragem que não percebia nela. Ou então não tivesse minha cara de pau de meter o bedelho em tudo e ir até para onde não era chamada. Já era o estereótipo da jornalista. Tagarelávamos muito e não consigo somar os tantos professores que nos repreenderam. Eu só podia contar tanta história para quem estivesse disposto a ouvi-las. Acho que é uma forma de vivenciar também. O seu riso era sempre largo, de fechar os olhos, seus cabelos eram castanhos, lisos e brilhantes (que adorava, já que os meus eram esverdeados e secos do cloro), uma pinta linda sobre os lábios e, assim como eu, também usava óculos e sentava na frente. Assim como eu, também via no conhecimento uma forma de superar a renda baixa e melhorar a qualidade de vida. Nunca quisemos muitos bens materiais, éramos duas idealistas com vontade de mudar as coisas erradas e injustas do mundo. A Kátia era tão chorona quanto risonha. Eu tentava ser mais dura, mas também era uma sentimental sensível. Para completar meu dia emotivo, um sábado no meio do feriado, outra amiga da infância, Silvana Borghi, escreveu que éramos suas "ídolas", fofas, inteligentes. Escreveu também que eu estava a frente do meu tempo, que tinha aparência comum, mas um brilho que me destacava. Isso me fez chorar muito. Porque realmente eu já brigava com quem fizesse bullying, sem nem saber o que era isso. Não existia o politicamente correto, mas eu era contra qualquer forma de racismo e machismo. Eu tinha 12 anos e já achava um absurdo criticarem as meninas beijoqueiras da escola ou que usassem saias curtas. Silvana era tão inteligente e observadora e menos falante do que nós. O que me faz constatar que formávamos uma turma mesmo especial. Não foi fácil crescer nos anos 80. Saímos da ditadura para as Diretas , era uma época de garoto usar brinco e deixar o cabelo crescer e garota tosar o cabelo e usar ombreiras. A liberdade comportamental de hoje, iniciamos há 30 anos. Em 2005, quando perdi a guarda da minha filha, fiquei tão perdida. Não imaginava isso ser possível, não comigo, alguém que amava, educava, cuidava tão bem da filha, que trabalhava, não usava drogas. E porque era mãe. Não tinha conhecimento de mãe perder a guarda de filho, a não ser quando jogava criança da ponte ou tentava matar. Foi um período tão conturbado que não consigo lembrar como Kátia Cândido voltou para minha vida, tão madura, linda, advogada. Me deu assistência emocional e jurídica, me fez entender com sua paciência didática como aquilo era possível. Talvez essa mulher tão sensível sofra tanto porque escolheu uma carreira para acabar com a injustiça, mas, assim como eu, percebeu que é batalha inglória e nunca seremos vencedoras. Não vejo mais o meu brilho, nem nos olhos. O brilho talvez viesse porque tudo que eu fazia e dizia, acreditava apaixonadamente. Me falta paixão na vida, talvez porque seja difícil acreditar em qualquer coisa. Me sinto muito fracassada, percebo agora que havia muita expectativa na minha pessoa, de todos os lados. Sou uma promessa que não se cumpriu. Sempre quis fazer algo maior do que eu, mas nunca consegui. Nunca coloquei meus sonhos e realizações em outra pessoa, sempre quis fazer eu mesma, quem quisesse, fosse junto, seria ótimo, mas sempre me bastei e agora não me basto mais. Me falta perspectiva e esperança, pois não espero mais nada, tem vezes que acordo só querendo que o dia termine. Kátia Cristina Cândido talvez nem imagine o quanto é parecida comigo. E de novo só consigo escrever em HTML e fica tudo assim confuso...

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Voltar para Morrer na Praia

   Poderia escrever como foi horrível passar dois dias infrutíferos, densos e pesados, estar no Fórum de Ribeirão Preto, ir ao cartório, perguntar porque demora tanto o processo no gabinete do juiz, que teria o prazo de 10 dias, e ouvir, em tom jocoso: "Mas 4 meses é pouco, tem processo que fica mais de um ano!". Poderia escrever sobre o dia mais quente do ano na cidade mais quente do Estado de São Paulo. Sobre perder o direito das visitas monitoradas por culpa minha, sobre como detesto estar naquela cidade, como choro e desidrato e me sinto idiota. Sobre como isso parece uma penitência eterna, tortura psicológica e física, mas tudo isso me soa repetitivo.
   Prefiro escrever como é bom estar com Paola Miorim, que me vê sempre chorando e em menos de meia hora de conversa me faz rir e falar de coisas boas da vida. Me faz ter múltiplos interesses. De como ela é linda em todos os sentidos e a paz que ela transmite. Não poderia existir alguém melhor para mim nesses momentos críticos. Assim como a leveza da filha mais velha, Lívia, e a inquietude da mais nova, Giovana, que me passam tranquilidade e determinação. Se há algo de positivo nisso tudo é ter retomado essa amizade sólida e eterna, que começou na infância/adolescência e que, por essas distâncias de tempo e espaço, separou-se por alguns anos. 
    
    Voltei de Ribeirão Preto para São Paulo no ônibus das 15h30. Chorei muito na volta, ouvi muita música e dei continuidade na leitura de Chá nas Montanhas, um livro de contos de Paul Bowles. Nunca tinha lido esse autor e estou fascinada por sua descrição minuciosa de lugares angustiantes ou inóspitos, como abismos, desertos e montanhas. Lugares que Bowles conheceu pessoalmente, morando, convivendo com os habitantes. As histórias surreais me causam um estranhamento pavoroso, como se algo muito ruim fosse acontecer. Cada parágrafo cheio de informações, que por meu atual estado de desatenção ou por prazer, era lido duas vezes. Então o sol começou a se por. Fechei o livro e vi a paisagem, com olhos atentos de um escritor descritivo. Observando cada cor modificando-se em cada nuvem.
   Cheguei em São Paulo às 20h30 e no terminal Jabaquara peguei o ônibus para Santos às 21h45. Continuei lendo o livro. Entrou um homem visivelmente drogado, sem bagagem, muito magro, com roupas velhas e um pouco sujas. Ele nem se importou por haver um policial fardado no ônibus e repetia gritando: "Não acredito! Vou chegar em Santos! Eu consegui!". Alguns passageiros comentaram sobre o que a droga faz com a pessoa. Mas ele aquietou-se e a viagem transcorreu calma. Senti aquela emoção que sempre sinto quando da Serra do Mar se avista a Baixada Santista. É tão lindo que não consigo cansar de tanta beleza.
    Quando o ônibus se aproxima da rodoviária, o homem drogado começa a gritar com emoção: "Santos, eu voltei! Santos, meu amor, estou de volta!". Me emocionei também e chorei. Ele desceu do ônibus e procurou por alguém que o esperasse, mas não havia ninguém. Na minha mente criativa e cheia de histórias, imaginei que estivesse preso e essa alegria era a cara da liberdade. Ou o amor pela cidade natal. Nem desci. Preferi seguir no ônibus até a praia. E desci no Canal 1, em frente ao mar. Segui andando pelo calçadão. Que bom sentir o vento suave, a brisa do mar e o cheiro da grama cortada, do jardim mais lindo que eu já vi. Santos tem tanta vida noturna. Fui olhando as pessoas lindas, com pouca roupa, andando de skate, bicicleta, patins. Como é bom estar numa cidade em que garotas sobem em skates, garotos andam de mãos dadas. Entendi a alegria do homem que voltava para Santos. Há quanto tempo ele não sentia essa brisa ou via essas pessoas?
    Todo aquele sofrimento que passei em Ribeirão Preto ficou no passado. Meu momento era feliz e pleno. Respirei fundo e aliviada. Nem liguei quando senti algumas dores uterinas. Se for para sangrar, que seja olhando o mar. Pensei em Neruda, o poeta do mar, e suas casas com vista para o oceano, que visitei no Chile. Cantei mentalmente a música de Dorival Caymmi; "É doce morrer no mar, nas águas verdes do mar". Não me importa nadar e morrer na praia. Gosto tanto de nadar e seria uma morte gloriosa morrer no mar. Se for para sofrer que seja onde escolhi viver. O sofrimento é tão mais leve olhando o mar, que o vento até leva a dor embora. As luzes dos navios no horizonte estão brilhando. Deve ser muito doce morrer no mar.

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Parabéns Sistema Judiciário!

   Novamente em Ribeirão Preto. Já faz mais de um mês que não venho, nem lembro. Primeiro estava mesmo muito cansada dessas idas e vindas semanais, achei que, como o processo está no gabinete do juiz desde o dia 27 de julho para conclusos e ele teria 10 dias de prazo, o fim estaria próximo. Mas estamos no meio de novembro e o processo está lá, parado no gabinete dele, esperando sei lá o que. Logo chega o recesso de fim de ano e por mais um longo período ficarei nesse vai e vem Santos/Ribeirão Preto, como se fosse na esquina.
    É muito ruim viajar 6 horas para ficar numa sala por 2h30, com minha filha que chega diretamente da terapia, preparada para ao encontro, sendo monitoradas por uma psicóloga. Trazer a irmã piora tudo, porque Miranda tem energia demais para ficar trancada nessa sala e a coisa desanda. Mas, como disse a própria perita forense, elas perderam o vínculo de irmãs. Parabéns sistema judiciário! 
     Então quando consegui forças para viajar, era dia do funcionário público e o Fórum não abria. Deixei para outra segunda-feira, mas tive hemorragia uterina por uma semana e estou com anemia. O médico recomendou repouso. Então falei com minha filha Dora por facebook (já que mesmo com ordem judicial, ela não quer mais falar comigo por skype), expliquei a situação, mas ela também não gosta de conversar muito pelo face. Resta ligar de vez em quando para a casa dos avós dela, onde mora. Mas raramente ela está. Continuo sem saber nada dela, nem da escola, nem da terapeuta que ela frequenta semanalmente e que, olha só, fica no mesmo consultório da avó, também psicóloga.
    Mas enfim, estou aqui, nesse calor de 40C, feliz porque estou na casa da minha amiga Paola Miorim que amo muito e porque estou com saudades das filhas dela, inclusive, tenho mais convivência com a Giovana, de 12 anos, do que com minha própria filha. Parabéns de novo sistema judiciário! E quando escuto de advogados e gente dessa categoria que o sistema é assim mesmo, é demorado para todo mundo, percebo que ninguém liga mesmo. A culpa não é mais da outra parte. Ele é apenas uma pessoa muito carente de atenção e com problemas de inflexibilidade, que encontrou no sistema judiciário todas as brechas para levar esse processo até a alienação definitiva e absoluta.
    Meu tempo de vida está terminando, como o de todos desde quando nascem. Mas sinto que o meu está terminando mesmo, pelo avançar dos anos, pelas doenças psicossomáticas que me afligem e por passar ano após ano nessa saga que me tornou uma pessoa chata e cansativa. Nem eu me aguento mais. Me olho no espelho e a imagem que eu vejo não é mais minha. Vejo que mais um ano está acabando e eu não fui feliz e nem fiz ninguém feliz.
     Pior é que nem sei se vou ver minha filha hoje. Como não estive mais aqui, ela mesma me disse que a psicóloga forense ligou para a família dela, avisando que não teria mais visitas, porém, não comunicou a minha advogada, nem a mim. Nesse momento estou no escritório da minha advogada, porque também não consegui falar com ela. Ligo e cai sempre na caixa postal, meus emails não são respondidos. A sensação de abandono é constante. Mas não tenho pena de mim, tenho mais é raiva, por ter deixado isso tudo acontecer na minha vida. Porque sempre soube que uma vez dentro desse sistema, seria difícil sair dele. Mandei um email para a outra parte em agosto de 2005, pedindo perdão por tudo, sem nem saber ao certo o que fiz, só queria que tudo terminasse para salvar a infância da minha filha e a minha vida. A resposta foi simples: "o processo de guarda é longo e doloroso para nós três". Visionário mesmo esse pai da minha filha, lá se foram 8 anos e isso continua. A infância dela acabou e, pelo jeito, vou passar bem longe da adolescência. Parabéns sistema judiciário!

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Minha Mãe, Meu Pai e Sex Pistols

     Fui até a casa da minha mãe e já do portão, eu e Miranda, o som alto dos vizinhos, que insistem em ouvir funk e pagode no volume máximo, nos incomodou. Isso já virou rotina e numa das últimas vezes que estive lá, coloquei um CD do The Clash para tocar bem alto, até perceberem que estavam incomodando e baixar o volume. Daí fui direto pegar o mesmo CD para colocar e quando abro o som, eis que vejo Sex Pistols. “Mãe, você que colocou? Sim, procurei algo bem barulhento e lembrei dessa música gritada que você ouvia, mas é melhor que funk”.
   Confesso que fui invadida por uma satisfação indescritível! Além da sensação de missão cumprida em saber que minha mãe, de 78 anos, nascida na roça, preferia punk ao funk! Coloquei Sex Pistols no talo e cantei todas as músicas. Miranda até assustou porque nunca tinha me visto cantar estilo gutural. Chegou a chorar de medo da minha voz! Mas começamos a pular muito e no fim ela até riu. Mesmo após os vizinhos desligarem o som, fui até My Way, brilhantemente interpretada pelo lindo punk Sid Vicious. E com essa memória que não esquece quase nada, lembrei de como o punk entrou na minha vida. 
   Começou com The Clash, com minha inesquecível amiga Ana Paula Assumpção, que era fã absoluta e cantava todas as músicas. Mas Clash era muito politizado e melódico. Aquela coisa “faça você mesmo”, “aprenda sozinho”, chegou um pouco depois. Em 1988 morava em Ribeirão Preto e conheci Paula Soares (Paulinha), uma criatura doce e sensível, de voz rouca e suave, mas que amava Sex Pistols e se transformava quando ouvia a banda. Toda a agressividade e violência que poderia existir dentro dela era extravasada nos Pistols. 
   Fui assistir Sid&Nancy– O Amor Mata, no Cine Cauim, o que havia de mais cult naquela cidade provinciana. O filme me chocou. Apesar de ter lido Christiane F, 13 anos, drogada e prostituída, aos 12 anos, no fim ela se reabilitava e ficava tudo bem. Aos 18 anos tive a certeza de como as drogas pesadas podem destruir tantas vidas. Só ouvia o som melancólico dos anos 80 e o punk me trouxe muito mais energia. As festas em Ribeirão Preto e no apartamento onde moravam Paulinha, Lilian Pavan e Kátia Casimiro, tocavam muito Velvet Underground, Joy Division, Smiths, Cure e, claro, Sex Pistols ,no talo todos os dias. 
   Mas o que mais me impressionou no filme mesmo foi a interpretação do Gary Oldman, até hoje meu ator inglês favorito. Ele era o próprio Sid Vicious! Desde então passei a ver todos os filmes dele, mais de uma vez. Outro fato impressionante é a semelhança entre Oldman e meu amigo André Corrêa *, também ator. A singularidade de falar com os olhos, se expressar com as mãos e com o sorriso. Sou apaixonada por ambos, indeterminadamente. 
   Em 1992 aluguei o filme para ver em casa, meu pai quis ver comigo, mas adiantei que era só sexo, drogas e rock, mais rock e drogas do que sexo. Ficou mais interessado ainda para saber que tipo de sétima arte andava me fascinando. E vimos juntos o menino Sid e toda a juventude periférica de Londres introduzindo o punk no mundo, que estava ficando chato de tanto rock progressivo. Vimos a ascensão da banda, a paixão desmedida desse garoto ingênuo e virgem pela junkie americana Nancy, que fazia qualquer coisa por um pouco de heroína. Vimos Sid matar Nancy a facadas e, ao acordar, ficar perdido no meio do sangue, sem saber o que tinha acontecido. Após quatro meses na prisão, aos 21 anos, morrer por overdose. 
   No dia seguinte, meu pai acordou triste e foi para o trabalho triste. No almoço me disse que o filme não saía da sua cabeça. Mais do que tudo, ficou com muita pena por aquela garota ter sido assassinada pela pessoa que mais a amava, por não ter pais que olhassem por ela, e por Sid, que tinha talento, mas se entregou para as drogas. Acho que nem meu pai, aos 56 anos, tinha noção de como a droga pesada seduz, vicia e aniquila. Meu pai disse que a interpretação de My Way por Sid Vicious era mais sincera que a de Frank Sinatra. No que eu concordo plenamente. O amor mata e a música mata a dor. 
  E para finalizar esse texto meio nada a ver, digo para vocês procurarem o link do Gary como Sid, cantando ele mesmo My Way, incorporado por Sid, na cena apoteótica do filme, porque só consegui escrever em HTML** e saiu tudo sem parágrafo, coisa que detesto porque não dá para entender direito. No fim, é um texto bem punk mesmo. 

 *Quem estiver por São Paulo e quiser conferir, concordar ou discordar do que sinto, André Côrrea está em cartaz na peça Ricardo III, no teatro João Caetano, na rua Borges Lagoa.
 ** Consegui acertar agora, mas achei bacana deixar escrito isso porque ficou bem punk.

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Ela Deixava Tudo Mais Lindo

   Nos conhecemos porque era mãe da Raquel, a melhor amiga de Dora. Um dia, depois da aula, aproximou-se de mim com toda a simpatia do mundo: "Oi, eu sou a Claudia, mãe da Raquel. Ela fala muito da sua filha, você podia deixar ela hoje fazer um lanchinho lá em casa?". Deixei feliz, porque estava com febre e tinha Miranda com 3 meses, para cuidar inteiramente sozinha e autônoma. Claudia era alta, com uma postura impecável, linda, de sorriso largo e tinha os cabelos bem curtinhos, super estilosa.
   O marido dela, Fernando, foi levar Dora de volta para casa. Minha filha chegou toda radiante porque Raquel, além do irmão gêmeo Pedro, tinha mais dois, Vítor e Breno. Com seu jeito rápido de falar, contou que Fernando era muito divertido e que eram todos ótimos. Outra vez Claudia me convidou para tomar um café em sua casa, quando fui deixar Dora na escola. Passamos a tarde toda conversando sobre tudo. Que mulher apaixonante! Não dava vontade de sair do lado dela.
    Me contou que o cabelo curto era porque teve câncer de mama e passou por quimioterapia, que foi miss Santos, teve história triste na infância, era carioca, engravidou dos gêmeos por (maravilhoso) acidente e que estava com o amor de sua vida há mais de 15 anos. Vi que não teria mais jeito e seríamos amigas para sempre. Então lhe contei minha situação com Dora, de "foragida". Me apoiou totalmente e disse que faria o mesmo, embora não imaginasse o Fernando agindo de forma tão torpe.
    Nossa amizade crescia na mesma proporção que a de Dora e Raquel. Nossas filhas eram da mesma classe e faziam ballet juntas. A influência dessa família para Dora foi ótima. Ela passou a levar seu prato para a pia, "arrumar" a própria cama e quando ficava nervosinha, com alguma negativa minha, Raquel dizia: "Desculpe Dora, mas sua  mãe tem razão". Me senti no céu quando fui na festa de alguns amigos de Claudia e ela me apresentou como sua irmãzinha. Quanto orgulho e desejo de ser irmã dela eu tinha.
    Sua casa era impecável, cada detalhe tinha uma história pessoal. Na Páscoa era cheia de coelhos e chocolate, no Natal tinha todos os enfeites lindos, que encantavam as crianças. Ela não suportava me ver chorando e tinha uma palavra positiva para tudo. Me ensinou a  maquiar meus olhos. "Você tem que valorizar esses olhos lindos, grandes e expressivos!". Me ensinou coisas práticas da vida, como picar salsinha e colocar no congelador, esquentar água no inverno para lavar a louça e fazer quatro coisas ao mesmo tempo. Me deu cintos de presente quando fiquei muito magra e minhas calças estavam caindo. Me deu um guarda-chuva gigante de arco-íris, para alegrar os dias de chuva, vestidos lindos para me deixar linda e fazia os melhores bolos e trufas do mundo. Me deu um bolo maravilhoso de presente de 40 anos! Era festa dos gêmeos Pedro e Raquel também, que aniversariam um dia depois de mim.
    Quando Dora foi levada, ficamos ainda mais amigas, apesar de eu não ir tanto na casa dela, porque percebia que Raquel ficava triste, porque a melhor amiga desapareceu de sua vida. Em janeiro de 2012, Claudia foi na minha casa, nem tinha me dado conta que não nos falávamos desde o seu aniversário. Cláudia gostava de olhos nos olhos, de papos longos, não era dada a conversas virtuais, no máximo telefonemas. Queria pessoas, contato, toques, beijos. Me abraçou chorando porque estava muito preocupada comigo. Me contou que o câncer havia voltado, na coluna e fêmur. Falávamos abertamente sobre a doença, eu via seus exames e entendia tudo (trabalhei no Hospital do Câncer e outros casos para outros posts). Estava sempre muito saudável e preparada para qualquer batalha.
    Quando eu ia em sua casa e começava a falar dos meus problemas, me sentia uma egoísta medíocre, mas ela dizia que não, era bom saber que existem outros problemas além do câncer. Era tão direta, tão prática e objetiva. Nunca imaginei que ela perderia a batalha. Não achava justo alguém como ela ir tão jovem, tão linda, com a família mais linda que já conheci (e olha que conheço muitas famílias lindas). No início de dezembro de 2012 fui em sua casa para comemorar o fim das quimios e radioterapias... mas havia atingido a cartilagem e ela disse que eram dores realmente insuportáveis. "Caraca, essa doença é mesmo ardilosa!" Mas falava isso sorrindo. Passei o dia todo na casa dela, porque nunca tinha vontade de sair de lá.
     Fui assistir a apresentação da Raquel no Teatro Municipal de Santos, levei comigo os amigos Maria Paula, Marcinha e Marcelo. Como Raquel é centrada e disciplinada. Que menina linda que brilha no palco! Que saudade de ver Dora e Raquel juntas! Logo após o Natal fui ver a Claudia. Estava no quarto, doía levantar, mas me abraçou sorrindo e estava linda, sempre tão linda. Disse que havia perdido quase 10kg. Respondi que então estava 10 kg acima do peso, porque continuava maravilhosa.
     Ligamos para Dora, que falou com Raquel e Cláudia pela primeira vez em quase 2 anos! Quanta emoção! Enquanto Raquel saiu do quarto para falar ao telefone, tivemos uma conversa dura. Ela havia tomado morfina e era muito estranho ver alguém que nunca sequer vi alcoolizada, ir transformando-se sob o efeito da droga. Me pediu que, se caso morresse, mantivesse contato e fizesse permanecer a amizade entre Dora e Raquel. Assim como eu, imaginava as duas juntas na adolescência, na vida adulta e por toda a vida. Assim como confiava em mim para deixar seus filhos sob meus cuidados, eu confiava nela e no Fernando. Me deu vontade de chorar, mas não chorei, apenas ri nervosa, porque não seria preciso isso. Disse ainda que eu era uma irmã para ela, como se nos conhecêssemos de toda vida.
    Ela se foi para sempre em janeiro deste ano. Lembro dela sempre que pinto meus olhos, faço coisas práticas na casa, uso os presentes que me deu. Ou seja, todos os dias. E sinto sua presença sempre que encontro seus filhos, tão lindos, inteligentes e carinhosos. Antes de lamentar, agradeço a passagem meteórica dessa pessoa incrível em minha vida. Foram menos de 5 anos, mas que valeram por uma vida inteira. Prefiro acreditar que ela era um anjo que deixava tudo e todos mais lindos. Que deixou minha vida mais linda e com mais amor e amizade. Que está perpetuada nos filhos maravilhosos.
   Muitas vezes declarei meu amor por ela, mas ainda acho pouco. Deveria ter dito que me tornei uma pessoa melhor depois que a conheci e que por toda a minha vida e além dela vou amá-la. E se ela fosse uma música, seria essa:  http://youtu.be/TzTVn5w4kWU 
    

domingo, 27 de outubro de 2013

O Tal Amor Lúdico

     Uma amiga* me escreveu, dia desses, que o amor é convivência, então, se não convivemos com a pessoa, o amor vai diminuindo até não existir mais. Achei tão triste isso, embora faça total sentido. Prefiro pensar que o amor fica guardado em algum lugar do corpo, para evitar sofrimento. Achei tão triste porque não convivo com minha filha e deixei de conviver com pessoas que amo, para sempre. A verdade é que o tempo e a distância fazem doer menos mesmo, a saudade dói menos, a lembrança vem menos, você pensa na pessoa no pretérito perfeito, quando muito, no pretérito do futuro.
     Mas, como minha filha escreveu numa das últimas (e poucas) vezes que me escreve, já sabe o quanto eu sofro e só quer saber de coisas legais. Falo de livros, de filmes, de viagens, de travessuras da irmã mais nova, pergunto sobre provas da escola, apresentações de balé que desejo ver, sobre seus passeios, mas talvez nada disse seja legal... e por isso  tento escrever sobre o amor. 
     Não sei se o amor é tão legal, na maioria das vezes faz sofrer. Mas sem amor a vida não teria sentido. O amor inspira a ser melhor, o amor é sublimado em música e literatura. O amor é minha única fé, só acredito no amor e em tudo que é feito com e por amor. O mundo está tão individualista, mas  parece que ninguém entende que esse tipo de comportamento não tem dado certo. Tenho escutado de alguns amigos que preciso me amar mais e acima de tudo e em primeiro lugar. Isso me soa tão egocêntrico. Dizem que só assim terei o amor dos outros. Isso me soa tão barganha, mercadoria. Claro que me amo e adoraria me ter como amiga, mãe, filha, namorada. Sou boa em tudo que faço, mesmo quando erro, porque só faço com amor. Mas não posso me amar mais do que tudo. Amo coletivamente, sempre fui assim. E me interesso apaixonadamente por pessoas, obras, lugares. Fico obcessiva até absorver tudo pelo que me apaixono... e então, eu amo.
   Ouço exaustivamente minhas bandas preferidas, leio os autores que amo com paixão, choro com interpretações brilhantes e brigo pela causa dos outros, como se fossem minhas porque, na verdade, são. E sinto tanta falta das conversas em mesa de bar, porque agora as pessoas ficam olhando o celular a cada 2 minutos, só pra checar se chegou mensagem. Estão sempre interessadas nos que não estão. Isso cria uma espécie de angústia e ansiedade coletivas. E também tem gerado um novo tipo de amor e paixão. O tal do amor idealizado, lúdico.
     Algumas pessoas me escrevem apaixonadas por mim, pelo que escrevo, pelas histórias que conto. Meio que me idealizam. Não sei como assimilam o que escrevo, porque tudo depende do estado de espírito. Pode soar genial, lugar comum, cansativo, inovador. Mas meu objetivo ao escrever é atingir o leitor, seja como for, só isso faz sentido na literatura ou na escrita informativa. Não escrevo só para mim, para desabafar, para receber elogios ou críticas, escrevo por amor, porque amo escrever. Talvez por isso algumas reações apaixonadas. Mas daí, quando me conhecem de verdade, me tocam, me olham nos olhos, some toda aquela idealização romântica. Porque sou uma pessoa extremamente comum, com fatos inusitados na vida. Será que sou uma fraude? Propaganda enganosa?
      O mundo virtual é muito propenso aos amores platônicos e lúdicos. Talvez alguns devessem ficar só no virtual, isso evitaria muitos desencontros, decepções e sofrimento. Mas que graça teria a vida sem o contato humano? Como mover o mundo sem amor verdadeiro? 
        
       Ontem assisti uma peça, Odisseia (Grupo Estúdio da Cena), no Sesc Santos. É uma versão contemporânea da saga de Odisseu, retratada no clássico Odisseia, de Homero. Entrei atrasada, sem saber ao certo o que iria ver, não sentei ao lado dos amigos Marcelo Santos, Marcia Abad e seu filho Dionísio, de 15 anos, que me esperaram até o quando deu. Chegar após o início da peça já é falta de respeito, atrapalhar é vandalismo. Então fiquei no canto, onde não incomodei ninguém e nem perceberam minha presença. Gostei do cenário e figurino, primeira impressão. Daí fui gostando dos atores, das analogias, do texto, ora cômico, ora trágico. Me envolvi totalmente com a história, a entrega dos atores. Nem percebi que alguns idosos saíram quando foram mostrados peitos. A nudez nunca deveria chocar, ainda mais quando é totalmente dentro do contexto. Por alguns instantes eu amei alguns atores, o tal amor lúdico. 
       Na saída, os mais diversos comentários, de gente que não entendeu nada e admitia isso aos que, assim como eu, gostaram muito, principalmente por colocar no século 21, personagens escritos há quase 3 mil anos. Odisseu, após 20 anos na guerra, volta para casa e depara-se com uma sociedade totalmente individualista e corroída, constata a fragilidade das relações pessoais. Sua mulher o esperou, mas construiu um império, baseado em seu heroísmo inventado. O filho perdeu-se no crack. O pai o resgata, o pai causa efeitos no público. 
        Daí amei ainda mais o Odisseu moderno, um amor totalmente lúdico.
     
* A amiga é a grande Cristina Dalto de Moraes, que nem imagina o quanto é boa filósofa! Como era bom filosofar com ela antes dos smartphones!

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Sobre Atletas e Nerds

    Essa história de estereótipos é muito castradora. Ninguém é uma coisa só o tempo todo. Me irrita nos meus momentos de melancolia ouvir que tenho que procurar ajuda médica. Por que as pessoas devem ser sempre felizes? Como, se a vida nos testa sobre todos os fatos e sentimentos, exigindo reflexão permanente sobre todas as coisas? E se há razões fundamentais para cair na tristeza e querer fugir da realidade dura e massacrante que nos é imposta? Ninguém é infeliz por opção. Muitas vezes não dá para sair do círculo vicioso da dor. Por isso, por vezes, é necessário se entregar, ir lá no fundo da dor para saber de onde vem. Nem sempre a felicidade é uma escolha, por mais que tentemos. A descoberta está no caminho e não na chegada. Alcançar o objetivo pode ser frustrante até. É como chegar no seu limite. O que há depois disso?
     Então fiquei refletindo sobre o que foi a minha vida até aqui. Uma série de estereótipos! Filha única, logo, mimada e egoísta. Só que não, nunca fui nenhum dos dois. Mas doía que as pessoas, no geral, pensassem isso de mim. Na escola era uma CDF, hoje chamados de nerds, do tipo que usa óculos e senta na frente, que responde tudo primeiro. Então tiravam sarro de mim. Comecei a nadar. Daí era a atleta. Passei a sentar com a turma do fundo na escola, para fugir de ser nerd, mas continuava tirando notas altas. Ficar de recuperação era o maior dos pesadelos para mim. Como nadadora, para os que não nadavam, eu tinha que ser desajeitada e masculinizada, mas não. Inclusive fui miss na escola, embora fugisse de ser a menina bonita, pois as meninas bonitas eram burras! Claro que não!
    E os filmes babacas* dos EUA, dão o modelo mais estereotipado de todos. Os atletas são uns trogloditas que não pensam e os nerds são os antissociais que vivem no mundo aleatório. Mas não é assim, a maioria dos atletas que conheço é muito inteligente, acima da média até. São atletas e nerds!

    A verdade é que sempre gostei de atletas ou nerds. Se for os dois juntos, então, é paixão na certa! Não é à toa que o meu primeiro amor era tudo isso: bonito demais, inteligente demais, nadava bem demais! E talvez fosse demais para mim. E foi daí que comecei a desconstruir essa ideia enraizada de que temos que escolher ser uma coisa só e seguir por aí até o fim. Não, absolutamente, não! Podemos ser muitas coisas ou tentar ser. Na tentativa também é possível descobrir um outro caminho.
   Considero que a perfeição só é atingida com a prática. Desculpem, mas querer não é poder. Não basta querer, tem que fazer! Um exemplo: a pessoa não tem flexibilidade física alguma, mas se todos os dias fizer um aquecimento, fizer alongamento, vai conseguir encostar as mãos nos pés, sem dobrar os joelhos. E não vai demorar muito para isso acontecer.
    Eu tinha um amigo da minha sala, no colegial, que também nadava comigo, o Marco Amaral. Ótimo nadador, treinava com muita disciplina e era o melhor aluno. Entendia de todos os assuntos e era bom em todas as matérias, além do que era também muito bonito, todo esculpido em músculos. Éramos amigos, apenas muito amigos, ele até me dava dicas amorosas, apesar de ser um tímido no amor. Mesmo assim as meninas o achavam esquisito porque era nerd demais. Eu o achava muito divertido em suas conjecturas geniais sobre quase tudo. Vai ver eu também era uma esquisita.
    Percebo agora a diminuição do preconceito com os nerds, finalmente  perceberam serem eles os bem sucedidos do amanhã. Também há uma maior valorização dos atletas. No meu tempo (nossa, como pareço velha escrevendo assim), muitos atletas eram vistos como folgados, que faltam demais nas aulas** e não trabalham. Como se treinar não fosse trabalhoso.
    A esperança para mim é algo que prostra, se você ficar apenas esperando. Não espero, gosto de fazer e sou extremamente imediatista em tudo. Tenho uma sensação estranha de que a vida está acabando e estou perdendo meu tempo. Mas a vida está acabando desde quando a gente nasce e talvez essa seja minha maior angústia. Há tantos livros para ler, filmes para ver, pessoas e lugares para conhecer. 
    Por isso não gosto de esperar. Porém começo a ter  uma certa esperança por conta do caos que está o mundo. Sempre nos piores momentos surgem as melhores ideias. Aparecem as melhores pessoas. E as grandes questões filosóficas também são fruto do caos. Assim como tantos, continuo sendo atleta e nerd na construção da minha personalidade. Mas acho que posso ser mais que isso, se realmente quiser ser.

* Filmes americanos babacas, fique claro, porque há maravilhas no cinema dos EUA
** Atleta falta muito na escola por conta das competições em lugares distantes e porque nenhum campeonato decente dura menos do que 4 dias, tomando de quarta a domingo.