Faz 15 anos eu estava na Maternidade Pro Mater, pertinho da avenida
Paulista, para embarcar na aventura humana de ser mãe. A mãe humana
é diferente das outras mães. Não é só instinto de preservação,
o parir, lamber a cria, amamentar e nutrir. E depois que o mamífero
cresce e se vira sozinho, “adeus meus bebês”. Mães humanas são
animais racionais que pensam no “é pra vida toda”, porque a mãe
humana continua mãe depois que o filho vai embora. A mãe humana tem até a Síndrome do Ninho Vazio quando o filho sai de casa. Isso deve seguir até uns 50 anos depois de ser mãe. O filho nunca sai do coração
da mãe humana. Muitas vezes, nem da alma.
Ah, mas isso estava tão longe dos meus pensamentos há 15 anos. Eu
só conseguia olhar aquela menininha perfeita de 3.640 kg e 47
centímetros. Linda, apertava meu dedo enquanto mamava loucamente.
Nossa, como meus seios, que já não eram pequenos, estavam
imensamente enormes! Quando fui ao banheiro pela primeira vez
constatei que minha barriga ainda parecia carregar um feto de 7
meses. Sangrava como nunca havia sangrado na vida, talvez precisasse
usar uma fralda! E nada disso importava. Eu só conseguia olhar no
espelho e ver uma mulher linda, de pele incrível, olhos brilhantes,
sorriso encantador. Depois de 7 meses e meio de total repouso, estava
cheia de energia para fazer de tudo.
Nem tinha rede social, celulares fotográficos e mesmo a câmera
digital, ainda começava. Era sábado de Carnaval em São Paulo, não
esperava ver tanta gente no quarto. A gravidez foi cheia de histórias
e tão delicada que pessoas muito queridas a acompanharam de perto e
fizeram questão de estar lá na hora da chegada da aguardada Dora.
Parecia uma festa, cheia de gente que falava alto e ria num ambiente
repleto de endorfina. Eram amigos e familiares meus e do pai da minha
filha, que chorava emocionado sempre que olhava o bebê. Eu, para ser
bem sincera, não chorei na hora do parto, nem logo após. Estava
mais aflita com os procedimentos cirúrgicos, com as agulhas e
anestesia. Chorei mesmo quando cheguei no meu apartamento três dias
depois e vi que dali em diante era eu e o bebezinho. Mas, para minha
surpresa, foram meses de aleitamento, paz, conhecimento humano e
estado de graça.
Tem aquela história da mãe que sonha em ter filha bailarina. Nunca
fui a mãe dessa história, aliás, antes de ser mãe, não me
imaginava mãe de história nenhuma. Mas eis que minha linda filha,
sempre tão delicada no toque das coisas e na descoberta das palavras
(e que transbordava alegria nas risadas banguelas e nos abraços
apertados) começou a andar na ponta dos pés. Logo soltei um “vai
ser bailarina”, de forma meio irônica, porque sabia que minha
filha sempre seria o que ela quisesse. Nunca estimulei protótipos,
ao contrário. Mas a menina era louca por Barbies, 50 tons de rosa e
bailarinas. Também cantava Roda Viva, do Chico Buarque, aos 3 anos.
E sempre gostou de Mozart. Mas eu nem achava isso coisa de gênio,
achava que era coisa de quem é minha filha mesmo. Também era o bebê
simpatia que andava de carrinho pelas ruas dando oi e acenando para
todos. Adorava uma estrada e arrumar mochila para viagem. Tanto que
fizemos parte do Guia 4 Rodas Bebê a Bordo, em 2003, o que resultou
numa matéria do lançamento do livro na TV Cultura. Conversava com a
câmera, como se fosse minha filha!
Hoje esse ser tão amado faz 15 anos. Ainda não lhe desejei feliz
aniversário. Há alguns dias não acessa internet. Ela já deve ter
acordado e ido para sua nova escola. Tento imaginar como é o quarto
em que ela dorme, quem é a pessoa que a acorda ou se acorda sempre
só. Penso como foi seu café da manhã dos 15 anos. Se comeu frutas.
Enquanto tomo meu café amargo e puro, sozinha na cozinha, lembro
nossas manhãs em São Paulo, quando começou a comer à mesa,
sentada em seu cadeirão, experimentando todos os tipos de queijo que
nosso querido amigo Clayton, trazia para salutar degustação. Lembro
a casa que moramos em Boiçucanga, nossos cafés da manhã na
varanda. Cheios de músicas de passarinhos.
Tento imaginar seus novos amigos na nova escola. E também os
antigos, que eu não conheço. Lembro de todos os amigos do jardim da
infância, alguns com quem ainda tem contato. Também lembro o jeito
que ela acordava, me dando bom dia, sentando no meu colo, me
abraçando e me beijando. Sempre assim, carinhosa. Tento imaginar
quem foi a primeira pessoa a lhe dar feliz aniversário hoje. Quem
lhe escreveu a primeira mensagem a ser lida. Escrevo há alguns dias,
mas não obtenho resposta. Sei que ela sabe que escrevo e sei que
algum problema cibernético a impede de me responder. Não há
fiações e conexões falhas que consigam cortar o elo telepático
que existe entre nós. Mesmo não fazendo parte dos seus
aniversários, suas festas, formaturas, seus ensaios, sei quem ela é.
Ela sabe quem eu sou. Sou a mãe que nunca está no dia-a-dia. Não
porque não queira, não porque não tente ou tenha tentado de todas
as formas. Não imagino o que doeu nela. Sei da
dor que isso causou e causa em mim.
Não sou uma mãe do cotidiano. Sou mãe com hora marcada, mãe nas
férias. E nem sempre o tempo marcado é o tempo certo, o necessário,
o desejado. Mas é o melhor tempo, é o que temos. E os melhores
momentos, os dias mais felizes são os dias com ela. Podem ser 5 ou
500. O que sempre vejo nela é beleza. Nas suas opiniões, indecisões
e certezas. Além de que tudo ao redor dela se torna mais leve.
Estilo A Insustentável Leveza do Ser.
A
vida como um musical
Assim que aprendeu a andar na ponta
dos pés, saiu dançando. Antes dos 3 anos a professora Juliana
Andrade veio me pedir para dar aula para Dora, “porque era
bailarina nata”. No que eu concordava plenamente. Seguiu bailando
por Santos, na Rosely Ballet e na Escola de Bailado Municipal de
Santos. Quando saíamos para o supermercado, praia ou cinema, a
menina começava a bailar, saltitar e cantar, dentro do contexto,
como um musical. Eu achava lindo e dizia, com orgulho, “a vida da
Dora é como um musical”. Ela continua dançando. Agora na Carla
Petroni, em Ribeirão Preto. Tem verdadeira paixão pela dança. A
Dani, coreógrafa do Municipal de Santos, já me dizia que Dora
pegava coreografia muito rápido e que “inventava” passos durante
os intervalos dos ensaios. E eu incentivava a música e a dança na
vida dela. Porque dança é arte e esporte. Acho complexo.
Então nas últimas férias fomos
ver La La Land
no Cine Belas Artes, o meu preferido em São Paulo. Só não foi
perfeito porque não conseguimos ingressos para a sala Drive In, mas
compramos adiantado e fomos curtir a Paulista sem carro no dia do
aniversário da cidade. Antes do filme, ouvimos muita música dos
artistas de rua que tocavam pelas esquinas e calçadas, dividindo
espaço com exposição de quadros, posters, pinturas e artesanatos.
Comemos no nosso tradicional local da Rua Augusta. E chegamos meia
hora antes da sessão para tomar um café. Estávamos ansiosas para
saber os motivos de tantas indicações ao Oscar, além de ser
musical, o que significava ter muita dança e Dora estava saudosa das
aulas, louca para sair
bailando.
Confesso que musical não é minha preferência de gênero
cinematográfico. Mas o dia estava incrível e estar disposto já faz
você gostar de algo antes de conhecer. Enfim o filme começa e tem
duas cenas musicais seguidas, se só assim fosse, talvez eu não
gostasse tanto. Mas começou ter um roteiro bom, apesar de comum.
Pessoas que querem seguir sonhos. Pessoas que pensam em desistir dos
sonhos. E tantas referências de musicais e homenagens. E casal
carismático que filosofa sobre vocação, submissão ao sistema e
rejeição. E muito jazz. E cenas incríveis. E alguma vontade de
chorar, mas não sabia porquê. Às vezes uma sensação de estar
vendo uma obra-prima à minha frente. Outras de estar com minha
obra-prima ao lado.
E quando a última estação do filme se aproximava do final, as
lágrimas vieram e fui secá-las com a mão, que estava cheia de sal
das pipocas. Não sei se chorava da cena do filme ou da cena real. Ao
olhar para o lado, vejo Dora quase aos prantos. Não sei se vamos
superar esse dia ou esse filme.
Só espero que siga levando a vida como a dança, com leveza, com
paixão, treinando, aprendendo, conhecendo, aprofundando, algumas
vezes no chão, outras flutuando. Hoje ela faz 15 anos! E eu só
desejo que o seu dia seja cheio de amigos e música e amor. Porque os
amigos são nossa escolha. E a música dá sentido à vida. E o amor
é o que nos protege do mal.
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