domingo, 11 de janeiro de 2015

O Menino João


    Escrevi o texto abaixo no dia 9 de janeiro, não sabia se queria que fosse o primeiro do ano, mas foi. Para quem quer saber sobre minhas férias com Dora, já adianto que ela pediu para voltar uma semana antes. Como eu a amo, deixo-a livre. O avô foi buscá-la. Mas viajei no mesmo carro, com ela e Miranda juntas. Estava dormindo quando descemos, nem nos despedimos. Ela teve muita alergia e queria o pai, desesperadamente. Ribeirão Preto é seu lar, sua casa, onde está sua família. Não há porque seguir o que o juiz manda. Não iria obrigá-la a ficar onde não queria, revendo amigos que não via há 4 anos, enquanto desejava estar com os amigos de Ribeirão Preto. Sua vida é outra vida. A irmã Miranda enche sua paciência. Não há vínculos de irmãs. A alergia é forte, mas o pai não quer eu saiba nem o nome do médico. Não vou insistir com o avô que, em princípio, mostrou-se solícito e disse para juntos ajudarmos Dora a se curar, já que seu filho era irredutível. Tudo dissimulação, era só para não me contrariar, já que sou tão louca. Que 2015 seja um ano bom, com anjos em cachoeiras.




   Chegamos em Boiçucanga com céu azul, final de tarde. Não sabia onde ficaria com minhas filhas. Foram 4 anos sem férias juntas e queria um lugar legal, mas não estava querendo rodar, nem gastar muito e parei no primeiro quarto com banheiro perto da praia. Um chalé simpático, um lugar organizado, com gramado, espaço comunitário para o café da manhã. Gostei de Fran, a dona, decidi ficar lá com Dora e Miranda.
     Antes de dormir ouvi um som suave de violão. “Esse é o lugar certo”, pensei contente. Quando acordei as meninas continuavam dormindo pesado e voltei a ouvir o som de violão, saí do quarto e uma mulher me ofereceu um café sorrindo. Manhã de sol, café, vizinha simpática e um garoto lindo dedilhando com carinho uma viola, perfeito. A mãe, Shirley, toda comunicativa, contou dos acampamentos na Praia Brava na sua adolescência, da singularidade em ser rockeira numa família de negros sambistas, da dificuldade que foi convencer os pais de que, “apesar de ser mulher”, queria fazer faculdade.
    Mas eu não conseguia tirar os olhos do filho João, tão lindo, parecia o Ben Harper jovem. E logo me perguntou sobre as tatuagens de notas musicais, reconhecendo a clave de Dó e o Mi maior e passando os dedos longos sobre elas. O garoto de 14 anos era alto, jogava vôlei, já tinha feito natação, sabia ler partitura e era muito falante, de sorriso largo. Conversamos sobre música, viagens, esportes e tatuagens. Ele disse que com tanta música boa no mundo, não se conformava como tinha gente que ouvia funk. “Mas funk do ruim, não do James Brown”. “Já me disseram na igreja que rock é música do diabo, mas não acho que o diabo seria capaz de fazer algo tão lindo”, filosofou o menino. Também falou do fusca que era do seu avô e que seria seu, que já cuidava do carro. Achei lindo um garoto ter orgulho de andar no fusca do avô.
    Me deu muita esperança conhecer um jovem como João. Quando me disse que nunca tinha ido numa cachoeira logo indiquei a de Boiçu, uma das mais lindas que já conheci. Expliquei o caminho para o pai, avisei que a trilha não era fácil, mas quando se chega ao poço vale cada gota de suor. Disse também que iria lá com minhas filhas, para evitar o horário do Sol forte na praia, porque sei que crianças não ficam no mar o tempo inteiro.
   João tocou Tempo Perdido do Legião Urbana e eu contei dos shows que fui da banda. “Mãe escuta isso! Ela foi em vários shows do Legião!” E cantarolamos “ainda que eu falasse a língua dos homens e falasse a língua dos anjos, sem amor, eu nada seria”. Combinamos uma cantoria na noite de Lua cheia linda que viria. Miranda acordou e João, que tinha uma irmã de 4 anos, logo puxou assunto e espantou-se com o tamanho da criança. Cheio de ternura com a irmãzinha, Sofia, disse que encontou uma amiguinha para brincar. Então Dora levantou e apresentei os dois. João abriu o sorriso lindo. Percebi que ficou feliz em ver que eu tinha uma filha adolescente tão bonita. Não senti ciúmes, confesso que viajei longe e pensei que adoraria ter João como genro.
     Então a família saiu de carro. Disseram que iriam na praia e seguiriam para a cachoeira. Respondi que iria em seguida e nos encontraríamos lá. Mas pensei que deveríamos ter seguido todos juntos, já que eles não conheciam o lugar e que seria perfeito Miranda com Sofia, Dora com João e eu com a mãe rockeira, mochileira e falante. O pai? Bem, era um tanto calado, mas é sempre bom ter um homem quando se faz uma trilha.
    Fomos eu, Dora e Miranda. Há uns 7 anos não fazia aquele caminho árduo e fiquei satisfeita com minha capacidade pulmonar e muscular. Nada doeu. Miranda aguentou firme e forte. Dora só cansou no final. A cachoeira continuava linda e selvagem. E lá ficamos por um bom tempo. Mas muitas pessoas começaram a pular das pedras e senti uma dor no peito, como se uma tragédia fosse acontecer. Contei para Dora que o irmão de um amigo meu do colegial morreu mergulhando ali e que Marcelo Rubens Paiva acidentou-se ali também. Me deu vontade de sair.
   A volta, como sempre, foi mais rápida. Só não foi em tempo recorde porque uma mulher andava devagar e com medo até nas retas. Chegou a ser engraçado. Prudência nunca é demais, mas parar o trânsito é exagero. Por algum motivo, talvez para fazer Miranda ter cautela, falamos sobre escorregar e morrer na trilha. Mas depois eu e Dora concluímos que seria um bom lugar para a alma ficar, no meio da Mata Atlântica, com barulho de água corrente constante. Quando chegamos na estradinha de terra vimos uma equipe de resgate. “Estão vendo meninas? Alguém deve ter se acidentado”.
    Depois fomos até a casa de Nicole, amiga de Dora dos tempos do maternal. Ficamos no mar calmo, límpido e refrescante de Boiçucanga. Achei fantástico ver Dora e Nicole, que tanto se adoravam aos 2 anos, continuarem cheias de afinidade e assuntos. Miranda ficou enciumada, mas em pouco tempo perguntou por que Nicole ria de tudo. “Porque sou feliz”. “Você é muito fofa”, foi a definição instantânea de Miranda para a amiga da irmã.
    Voltamos todas para o chalé para pegar umas coisas e seguir para a piscina na casa de Nicole, duas quadras de distância. Assim que entrei no quarto, Shirley me chamou. Saí sorrindo e perguntei: - Foram à cachoeira?
- Sim. E meu menino morreu.
- Como?
- Ele morreu na cachoeira.
     Então me veio à mente a imagem do resgate chegando. Era para João.
    Abracei-a forte e comecei a chorar e ela me consolou. Disse que ele gritava de alegria por ver um lugar tão lindo, que corria e seguiu numa trilha, mas não voltou. Foi encontrado pelo pai, já sem vida. Provavelmente escorregou e bateu a cabeça numa pedra. Caiu na água. Desacordado, morreu por afogamento. Fiquei sem chão. Não caiu a ficha da mãe, não é possível estar assim tão conformada. Como ela não está me odiando por ter indicado o caminho da morte? Por que eu não estava junto para guiar aquele menino por uma trilha segura? Por que alguém tão iluminado morre tão jovem?
     Pedi para Dora e Miranda irem com Nicole, iria na sequência. Fiquei ali com Shirley e sua filha, esperando o marido voltar do IML, com Fran. Logo o casal dono dos chalés chegou. Estavam desolados, o marido não se conformava por não ter ido junto com eles. “Se tivesse me falado... sempre acompanho os hóspedes na cachoeira, é muito perigoso para quem não conhece”. Eu me sentia cada vez mais culpada. A irmãzinha não sabia muito bem o que tinha acontecido, apesar de ver o irmão desfalecido na sua frente. Quando o pai voltou aos prantos sem o irmão, ela perguntou por ele. E então chorou dizendo que queria o irmão. Lembrei de Miranda querendo a irmã por anos. Sofia não terá mais o irmão...
    Fui buscar minhas filhas. Mas fiquei um bom tempo com a mãe da Nicole, Telminha, que não via há 7 anos. Jantamos lá, as meninas se divertiram muito. Dora queria dormir na casa da amiga e eu deixaria, mas hoje não. Quantas noites passei sem minha filha? Quantas vezes pensei que algo horrível poderia acontecer a ela sem minha presença?
   Dora chorou quando voltamos para o chalé, pensando no menino que não estava mais lá. Estou aqui escrevendo e olhando minhas duas filhas dormindo juntas, na mesma cama de casal. Nosso tempo é estipulado, determinado, sei que será breve nosso encontro. Mas quero estar presente em cada minuto desse tempo. Quero sentir o cheiro delas, a pele, ouvir a voz, o canto. A família seguiu há pouco para São Paulo. Meu coração foi um pedaço junto do menino anjo. Me senti o anjo da morte. Assim que bati os olhos em João senti que jamais o esqueceria. Agora tenho a certeza.

  

8 comentários:

  1. Meu Deus, a história, é tão forte, marcante, que não tenho nem palavras para te dizer dos momentos de alegria que vc passou com sua filha.
    Mas não sinta-se o "anjo da morte"..... Sinta-se somente chocada e triste.
    Deus sabe de todos os nossos passos. Acabou o tempo dele.
    Um beijo

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    1. Janaína, obrigada. Superei o trauma de ter indicado o caminho para o pai, mas não sei quando conseguirei ir novamente no lugar que faz parte da minha vida desde a infância. Bjs

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  2. Adriana passo pelo mesmo problema que vc, tanto sua filha como a minha estudaram na mesma escola. Ah como dói há dias que tenho uma vontade desesperada de nunca mais acordar...essa dor que não passa

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    1. Em qual escola Thalyta? Se não quiser se expor, me manda email mendes_jornalista@yahoo.com.br

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  5. Adriana, Não sei se acredita em Deus ou em destino, mas temos diversas coisas em comum:

    .Sou estudante de jornalismo e amo esses "relatos do cotidiano"
    .E conheço João, sou vizinho e amigo bem próximo dele.

    Pulando de blog em blog acabei achando o seu e não acreditei no que vi: "Um texto sobre o João", pensei. Me recusei a acreditar até lê-lo...

    Sabe, conheci João na escola. Não estudávamos na mesma classe, mas sempre nos "esbarravamos". Uma partida de futebol foi o suficiente para começar uma efêmera, porém significativa amizade. Sempre conversávamos sobre Fórmula 1, Rock e Guerra Mundial (assunto que ele entendia muito bem, por sinal).

    Quando em formei em Dezembro de 2013, ele me perguntou se eu o abandonaria quando fosse à faculdade. Disse para ele parar de falar besteira e falei que nunca abandonaria meu irmãozinho (ele sempre me chamou de manão). No decorrer do ano passado, sempre nos falávamos e nos encontrávamos quando dava, nossa amizade foi crescendo muito e sempre o considerei demais, se tornando inclusive meu confidente (e vice-versa).

    No dia 8 de janeiro, estava comemorando o aniversário da minha irmã quando recebi a ligação do acontecido. Nunca chorei e fiquei triste na minha vida como naquele momento: "Deus tirou meu maninho de mim", dizia.

    Adriana, Não sei se acredita em Deus ou em destino, mas eu ter encontrado este texto "por acaso" não foi para mim coincidência! E não sabe o quão estou agradecido... Você, em pouquíssimo tempo que o viu, o descreveu perfeitamente. O menino que nunca tirava o sorriso do rosto, sempre tentando alegrar. Falante (demais kk) e no meu ver uma das almas mais puras que o Mundo teve...

    Estou tentando agradecer, mas acho que estou escrevendo demais... é que amava tanto meu amigo que quero que saiba que o ocorrido não foi sua culpa ou de ninguém...Era pra acontecer e poderia ter ocorrido comigo, com suas filhas, com qualquer um...

    Acredito em Deus e agradeço muito por ter chegado aqui e ler seu maravilhoso texto...Quero que saiba que deixou um amigo do menino que descreveu muito feliz e relaxado. E quero que saiba que Joãozinho foi um menino espetacular e ele está eternizado em minhas lembranças e em meu coração...

    Muito Obrigado, Adriana

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  6. Arthur Henrique, também não posso descrever o que estou sentindo nesse momento e quem tem que agradecer sou eu. Justamente hoje escrevi um texto sobre confiança... sobre como estou cada vez confiando menos em tudo... isso que você me escreveu só dá a certeza de que João era realmente alguém especial, acima da média, que não ficava nessa esquizofrenia de celulares e estava presente em cada momento de sua vida, ele olhava nos olhos, entendia sobre tantas coisas e com tão pouca idade. Não há um dia na minha vida desde a data fatal que não pense nele. Queria muito encontrar a Shirley, mas a dona da pousada perdeu o contato. Nem sei porque, para me desculpar por não ter ido junto, para abraçá-la novamente e sentir um pouco do João.

    Ah, mal consigo escrever de tão emocionada e porque meus olhos estão embaçados de tantas lágrimas, sabe, Dora falou, no dia seguinte: Mãe, se nós que conhecemos ele em apenas um dia estamos assim, imagina os amigos da escola, da música, da vida... e eis que aqui aparece um desses amigos. Só posso te dizer que João não era desse mundo, era especial demais. Me dá uma tristeza profunda pensar que o planeta perdeu alguém assim, mas como me disse a mãe dele, eu tive a sorte de tomar o último café da manhã ao seu lado... e fico grata por isso e a você.

    um abraço muito forte e cheio de amor pra vc

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