sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Ela Só Queria Abraçar Seu Filho


    Recebi o e-mail de uma mãe que perdeu a guarda do filho. Outra Dri. Como eu, como a Adriana Botelho. Li com dois dias de atraso e escrevi imediatamente. Essa Dri estava desesperada, disse estar trancada no quarto com uma faca, querendo se matar, que não suportava mais tanta humilhação e essa dor que a rasgava por dentro. Me escreveu porque leu esse blog e sabia que eu conhecia essa dor. Também sei que quando alguém quer se matar primeiro pede socorro. Sei que é uma forma de chamar a atenção para o seu sofrimento. E que existem algumas tentativas, antes de atingir esse objetivo, o suicídio. Tentei consolá-la e lhe dizer que não está sozinha, que não é a única a passar por isso e que todas as mães que perdem seus filhos para a Justiça, em algum momento, já pensaram em acabar com a própria vida.
    Não é fácil enfrentar a burocracia do judiciário, que nos trata como números. Não é fácil passar por esse processo de desumanização. Muitas vezes me pego repetindo chavões em “juridiquês” e tratando casos escabrosos com certa frieza. Mas quando aparece uma mãe dilacerada por ser brutalmente afastada do seu filho, volto a ser humana. Sinto a mesma dor e uma vontade enorme de abraçar e chorar junto. Sei o quanto é castrador ter a vida nas mãos de advogados, promotores e juízes. Muitos deles que nunca nos viram e tão pouco viram o rosto de nosso filhos. Pessoas tão entranhadas em papéis e números que acham normal o afastamento. “É assim mesmo que funciona a Justiça, tem muito processo para ler”. E quando o reencontro acontece, geralmente após anos, escutamos que “é normal esse estranhamento, com o tempo o vínculo volta”. Não, nada disso é normal e alguma coisa precisa ser feita urgentemente para mudar esse sistema torpe. Não suporto mais ver tantas vidas destruídas, tantas crianças órfãs de mães vivas.
    Essa Dri me respondeu pouco tempo depois. Foi um alívio imenso saber que não tinha se matado. Até o seu jeito de escrever mudou. Talvez por saber que alguém entende o que ela passa. Escrevi que não somos só nós. Falei de todas as mães que conheço, algumas que vivem por conta de antidepressivos, que também não viram seus filhos crescendo. Mais triste ainda foi saber que ela só tem esse filho de 11 anos e que não pode mais ter filhos. Me disse que tudo que queria era ter outro filho, como eu tenho. Isso me tocou tanto, que agora são 4h30 e não consigo dormir. Mas vou toda hora no quarto ver Miranda dormindo. Estou aqui prometendo a mim mesma ter mais paciência, ser mais tolerante e mais amorosa. O processo tem me tirado essas virtudes. Tudo bem que paciência nunca tive muita mesmo. Mas amor e tolerância nunca me faltaram, até me excederam.
    O pai do seu filho também pegou a guarda e levou para longe, para dificultar a visita, ganhar tempo no processo, afastar de todas as formas mãe e filho. E a Justiça, como sempre, ajuda os mais calculistas, com mais dinheiro e advogados de mau caráter. Sim, só pode ser um mau caráter o advogado que, para defender os interesses de seu cliente, não pensa no bem da criança. É cada coisa que essas pessoas fazem por dinheiro... talvez eu nunca entenda o interesse financeiro. Até no trabalho o meu maior interesse é o prazer no que estou fazendo, é a novidade. Mas o sistema judiciário já me fez pensar que a coisa mais importante do mundo é o dinheiro, não o amor. Ele, o dinheiro, é capaz de tudo, inclusive de tirar ou devolver a guarda de um filho. Alguém duvida que esses pais que tiraram os filhos das mães são mais abastados? Não. Porém tenho todas as dúvidas se eles sabem o que é amor.
   Talvez eu não tenha falado para essa Dri sobre nossa outra xará Dri Botelho. Em dezembro completará três anos que não vê a filha. O pai português a levou para Portugal. Pior de tudo é pensar que tenho sorte, já que minha filha está no mesmo Estado de São Paulo. São só seis horas de viagem. Em breve não será tempo nenhum, pois já desisti de trazê-la de volta. Já que ela não volta, eu vou. Poucos sabem como é duro deixar uma vida na praia e mudar para o interior, para um clima de deserto. Mas depois de quase quatro anos me dei por vencida. Nunca fui tão persistente. Sempre que algo me parecia muito difícil, tentava algo diferente. Mudava o rumo, partia para outra, desistia. Mas como desistir de um filho? Quantas vezes todas essas mães pensaram em desistir enquanto as lágrimas corriam pelo rosto?
    Dri, espero que você leia o que estou escrevendo e saiba que não podemos morrer em vão. Não tenho religião, não acredito na existência de deus, não acredito na Justiça (muito menos na do Brasil) e muitas vezes desacredito na humanidade. Me sinto uma excluída, que não tem direito à própria filha. Mas por algum motivo que ainda não entendi (e talvez nunca entenda) minha vida virou isso. Me transformei numa pessoa mais dura e menos sentimental. Esse sofrimento imposto não vai me tornar um ser humano melhor. Sinto o tempo todo que estou perdendo a vida. Sei que poderia ser muito mais produtiva. Poderia estar me cuidando mais, nadando, viajando para lugares novos, fazendo planos de férias, poderia namorar mais, me divertir mais. Mas nem consigo dormir direito. Nem planejar nada. Deixei o processo me guiar. Nunca mais serei como era. E tenho que amar quem sou agora. Mesmo não gostando do que vejo. Por algum motivo desconhecido nós temos que passar por isso. Pode ser para que nossos filhos saibam que lutamos por eles. Que eles não são os únicos que ficaram sem mãe por ordem judicial. Pode ser que juntas nós processemos o Estado, afinal ele colabora para que um processo de guarda, ou de simples regularização de visitas, que é o meu caso, se arraste por anos, até a infância acabar.
    Hoje seria o aniversário de uma grande amiga minha, que se foi tão nova, deixando quatro filhos lindos. Talvez por isso eu também não consiga dormir. Pela saudade e a falta que ela me faz. Só encontro minha amiga em sonhos. Ela não volta mais para os seus filhos. Mas nós estamos aqui. Nossos filhos ainda podem ter a esperança de abraçar novamente suas mães.

    Por algum motivo lembrei da Zuzu Angel. Nossos filhos estão vivos e poderemos abraçá-los de novo. Para quem tem saudade da ditadura, por favor, pensem em todas as mães que não puderam nem enterrar seus filhos.

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