quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Miranda, 8 Anos de Resistência

   Na primeira semana de junho de 2008, Tamer Fadida, meu vizinho em Paraty, o melhor vizinho que alguém poderia ter, me chamou mais uma vez para participar do Temascal, dessa vez com seu irmão, que acabara de voltar do México, onde viveu com xamãs. O Temascal é um ritual que usa pedras quentes, numa cabana, com pessoas e cantos xamânicos. O lugar era lindo. Na montanha do Coriscão. Só não podiam participar mulheres menstruadas e grávidas no primeiro trimestre. Olhei para a querida e sempre presente em momentos decisivos, Flavia Vieira. Era a única que sabia do meu comportamento sexual de risco há 8 dias (fazer sexo sem camisinha e correr o risco de engravidar ou contrair uma doença sexualmente transmissível). Pensei que a possibilidade de estar grávida era remota, já que eu estava há alguns dias de completar 38 anos e a matéria, de capa de uma dessas revistas semanais era, justamente, sobre fertilidade. Dizia que após os 35, as chances de engravidar caiam para 15%. Além disso, eu tinha uns problemas no ovário esquerdo. Enfim, fui no Temascal.
  Era como uma sauna seca muito quente, com cantos xamânicos. Não tomamos nada, nada mesmo, além de água. Senti a pressão cair. Fiquei tão mal, que não conseguia falar. Fui desfalecendo e me deixando deitar na terra fria, sentia uma batida compassada no útero. Estava quente, batia forte, eram pontadas, mas que não doíam. Contei para Flavia, que na hora disse: "você está grávida". Era um coração. Ela era muito forte muito antes de nascer.
   Mas só faziam 8 dias. Era coisa da minha cabeça. Segui meus planos de ir para o Ceará de jipe, atravessando o sertão, com Flavia e Dora, que tinha 6 anos. A viagem foi maravilhosa, longa, cansativa, mas melhor do que eu esperava. Lá tudo correu muito bem, até o dia em que vomitei sem parar, fui parar no médico, que me deu parabéns pelo bebê! E o que se passou na gravidez não é muito diferente do que milhões de mulheres passam. Sozinha. Aliás, sozinha não, sempre contando com a presença de muitos amigos. Mas nenhum pai para o bebê. O genitor não quis saber. Até entrei com pedido de exame de paternidade, ainda grávida, só para constar nos autos, porque sabemos o quanto a Justiça patriarcal protege os machos. Fiquei chateada, mas nem tanto, vai que depois o cara quer a guarda do bebê. Olha, isso eu posso dizer, melhor criar um filho sozinha do que passar uma década querendo o filho de volta... e não ter.


    Mas com esse cenário, não curti a gravidez. Que não precisou de repouso. Eu estava linda, nunca me senti tão maravilhosa. Morava num paraíso, comia só comida saudável, nadava, fazia hidroginástica, caminhadas, viajava, cuidava da filha, trabalhava. Mas não fiz enxoval, não queria coisas de bebê, quis mudar de cidade, estava tão insegura. Só descobri o sexo aos 6 meses. O nome foi sugestão da irmã. Não consegui imaginar nome mais bonito e mais sonoro do que Miranda. Ela nasceu em Santos, sete dias após a irmã mais velha completar 7 anos. Assim que nasceu fui invadida de amor por aquele bebê grande, de covinhas, que dormia oito horas seguidas, mamava sem parar e acordava sorrindo.
    E engatinhou muito cedo, começou a andar aos 10 meses. Chutava tudo o que via pela frente, logo dei uma bola porque pensei que só poderia ser uma jogadora de futebol quando crescesse. Mas não, ela continuava chutando as pessoas. A bola era usada mais pelas mãos. Essa menina linda e saudável nasceu sem pai, como tantas outras. Isso não é assim tão dramático, tão único.
   Mas uma semana antes de fazer 2 anos, teve a única irmã levada, por busca e apreensão, para Ribeirão Preto. Nós nem sabíamos onde a irmã estava. Eu dizia que foi viajar, estava passeando. Por 15 dias corria ao portão quando ouvia buzina. Achava que era "sua Doinha" chegando da escola. Olhava fotos da irmã e dizia: "minha Doinha" e chorava... brincava com as bonecas da irmã, até que passou a detestar Barbies, só queria bonecas bebês. Eu evitava tudo que era dança, bailarinas... porque ela lembrava da irmã e chorava. 
   Isso aconteceu em fevereiro de 2011. Em dezembro do mesmo ano, o avô morreu. O velhinho que nunca a pegou no colo. Nem falava mais, porém, que ela idolatrava. Quando meu pai foi para uma clínica, Miranda foi visitá-lo muito mais do que eu que, egoísta, não suportava a dor de ver meu pai com 40 kg, com olhar perdido, sem lembrar de mim. Miranda não via nada disso. Ela ia lá e ficava fazendo carinho na cabeça dele, conversava com os outros velhinhos e comia um lanchinho. Ah, sim, ela é muito comilona, mas muito mesmo.
   Dos 2 aos 5 anos de idade ela me acompanhou em fóruns, buscas e apreensões, infinitas idas até Ribeirão Preto, na esperança de ver a irmã, e nada. Voltava chorando, triste, querendo chutar ainda mais as pessoas e esse sistema que ela não conhecia, mas já era vítima. Por que a Justiça a impedia de ver a irmã? Por que os avós e o pai da irmã não deixavam que ela visse a irmã? Por que sua irmã não a procurava? Por que não voltava? Então, ela passou a dizer que a irmã tinha morrido. Ela queria matar essa dor dentro dela. Foi o que pensei, foi o que uma amiga psicóloga, Kátia Chigres, observou. 
    Mas elas se reencontraram. Foi difícil, mas o amor é imensurável, é recíproco, é infinito. E passamos por tantas nesses 8 anos de vida da Miranda. Tantas viagens, tantas mudanças, tantos transtornos. Tem noites de insônia que fico olhando para ela e penso como esse tempo poderia ter sido melhor, como eu poderia ter me dedicado mais à ela do que ao processo, como esse processo minou minhas forças, quase me enlouqueceu (sim, é totalmente kafkaniano). Mas Miranda sempre esteve ali: forte, alegre, saudável.
     E, entre todas as nossas mudanças, por mais que ela sinta falta da praia e da vovó, São Paulo foi a mais acertada. Não que tudo esteja bem e dando certo, mas porque foi em São Paulo que encontramos uma escola, a Teia Multicultural, em que ela pode desenvolver suas habilidades, sem tantos padrões, onde não me chamam para dizer que ela pode ter "hiperatividade", que ela é "difícil", "terrível". E foi numa manhã de fevereiro, há pouco mais de um ano, indo para a Teia, que ela parou para ver um treino na Tat Wong Pacaembu. Eu, meio leiga em artes marciais, disse que era karatê. "Não, mãe, karatê não é". Era kung fu! Ela fez uma aula experimetal, amou, continuou, diz que será Ninja, que vai ser uma kung fu até ficar velhinha, já fala até 20 em chinês. E um dia, conversando com o Shing Guilherme, ouço, orgulhosa, que ela tem um chute muito forte e, que se continuar assim, até os 13 anos pode ser faixa preta. Então contei dos chutes que sempre dava e que agora não chuta mais. Só no kung fu. "Adriana, as crianças dão sinais pra gente o tempo todo, elas mostram suas aptidões". E eu, que só tinha olhos para o processo, não enxerguei algo tão evidente! 
    E agora, quando penso nesses 8 anos, sei que sem ela, muitas vezes não teria saído da cama. Foi ela que com sua energia fora do comum, me fazia fazer alguma coisa. Foi ela que me fez cozinhar com prazer. Sem ela eu não teria me cuidado para cuidar dela. Sem ela eu teria mais tempo, mais dinheiro, mais liberdade, mas seria mais triste, mais sozinha, sem esperança. Hoje ela completa 8 anos, acaba, oficialmente, a primeira infância. Só espero ter mais acertos do que erros daqui para frente. E que ela siga sendo minha companheira para tudo. E siga gostando das músicas que gosta. E para ela vai hoje uma música do "gordo", como ela chamava o genial Tim Maia, antes de saber seu nome. Sim, ela é fã de Tim Maia, assim como Nirvana. Ela anda pela rua cantando Que Beleza https://youtu.be/Nq_AOktdhts. Ela é minha fortaleza, com quem divido tudo e que ninguém divide comigo. Miranda é feliz. E é essa felicidade, essa vontade de "fazer coisas legais" é o que mais admiro nela. Além de todo o amor que ela me dá.


   

10 comentários:

  1. UAU!!! Maravilhoso! Como vc e ela juntas <3

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    1. E vc sabe o quanto foi difícil e o quanto ela sofreu, sem saber expressar. Agora ela sabe <3 Amo você!

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  2. Muito amoooor!!! Nós e nossos "Mis" ❤❤

    Natalia nogueira

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    1. Sim, sempre pensei em MIguel pra vc, como é Miranda pra mim. Se não fossem nossos Mis...né, mana?

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  3. Amei, O que falar? Muitos acreditam em destino outros em carma (se não for a mesma coisa), acredito que ela escolheu você para ser mãe/pai pois saiba desde antes de nascer que seria seu porto seguro seu complemento e que viveriam emoções contrastantes e intensas! Parabéns Dri, parabéns Miranda.

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  4. Nem sei o que dizer. Que forte sua história que forma corajosa de viver. Me emocionou tanta coisa triste que se transformou em conquista. E pensar que fui te encontrar depois de assistir no jornal da cultura um advogado da família Delmanto que me lembrou o crime da rua Cuba e então fui buscar na Internet alguma coisa. A vida tem muitas dessas coisas não? Boa sorte.

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    1. Muito obrigada, divido aqui minhas histórias pra muita gente ver que não é única a passar tantos dramas e apuros e que, como dizia meu filósofo favorito, o que não nos mata, nos fortalece! Beijos

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  5. Miranda, admirável e maravilhosa, como na forte história de resistência e reconciliação que imediatamente me veio à mente quando soube que era a Miranda.
    E Miranda ela é: admirável, energética, sensível, lutadora.
    Dri, novamente suas palavras mágicas traduzem à perfeição como é a realidade.
    Amo vcs muito muito!!! Muito orgulho e admiração por vcs, sempre.

    "Somos da mesma substância que os sonhos..."

    Com amor,

    Gab

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    1. Que lindo! É só fui ler agora pq estou com insônia. Amo muito vc

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