sexta-feira, 3 de maio de 2013

Dentro do Hospital do Câncer

    O amigo jornalista Renato Rovai, que editava a Revista dos Bancários, me chamou para fazer uma entrevista com um jovem geneticista brasileiro que pesquisava (e estava na frente) o genoma humano. Fui entrevistar o gênio de 33 anos, no estilo ping pong*. Para escrever, primeiro precisei entender tudo o que significava essa pesquisa sobre células tronco, tudo tão novo no ano 2000. Modéstia bem de lado, que essa coisa de ser modesta nunca me definiu, a entrevista ficou ótima, tanto que enviei a edição da revista para Emmanuel, que trabalhava no Hospital do Câncer.
    No dia seguinte recebi uma ligação da agência de assessoria Comunique-se, que fazia a assessoria do hospital. Me agradeceram, disseram que a entrevista havia ficado excelente e me perguntaram onde eu trabalhava. Na época eu estava fazendo apenas trabalhos free lancer, meu último local havia sido o Palácio dos Bandeirantes, na assessoria do Governador Mario Covas, por isso eu havia vivenciado a doença de forma direta e tinha tanto interesse por seu combate, seus remédios, seu controle e um dia poder participar da descoberta de sua cura. Veio então a proposta de trabalhar para essa agência, apenas com a conta do Hospital do Câncer. Disse que pensaria e ligaria no dia seguinte para dar a resposta. Isso era só para aumentar meu passe, já que por dentro meu coração estava acelerado e a temperatura subia com a perspectiva dessa oportunidade.
    Meu trabalho consistia, basicamente, em noticiar todas as novas técnicas, tratamentos e aparelhos do Hospital, agendar entrevistas com oncologistas especializados e atender a demanda dos coleguinhas ávidos por boas notícias. Fácil? Nem tanto se considerarmos que é um lugar de referência mundial, com alguns dos melhores dos melhores médicos da área. Meu telefone não parava das 7h às 23h. Quantas vezes atendi repórter  às 22h para conseguir uma fala de algum especialista para falar sobre câncer de garganta no Jornal da Globo, que entraria no ar em 1h30. E conseguia, não porque sou o máximo, mas porque os médicos estavam sempre dispostos e me atendiam prontamente. Mais do que tratar as pessoas, esses profissionais queriam preveni-las, alertar para os exames preventivos, porque era e ainda é, a única forma efetiva de combater o câncer.
    Aos poucos fui saindo da agência e trabalhando exclusivamente dentro do Hospital. Tomava café com as enfermeiras, cumprimentava os pacientes, alguns já me chamavam pelo nome ao serem encaminhados para a quimioterapia. Nada mórbido, ao contrário, era um lugar cheio de vida, de pessoas dedicadas ao trabalho, conscientes da importância de estar ali e fazer o que faziam. Não chegava em casa pesada, esgotada, chegava sempre mais carregada de vida e energia.
    A ala infantil era um capítulo a parte na minha vida, porque muitas crianças não tem noção da gravidade da doença, por isso a estatística de cura entre elas, na época, era de 75%. Nessa fase comecei a pensar que ser ignorante muitas vezes pode ser melhor. Ignorante no sentido literal da palavra, porque ignoravam a doença, não sabiam o que era, suas consequências. A preocupação, a dor emocional ficava por conta dos pais, familiares, dos profissionais. Mas algumas sabiam o que se passava, como um garoto de 12 anos que tinha câncer ósseo. Ele já havia amputado uma das pernas e o pé da outra. Ficava na cadeira, lendo, lendo, lendo, sempre muito sério, só mudava quando apareciam os Doutores da Alegria, com seus narizes de palhaço, bolinhas de sabão e brincadeiras bobas, mas muito eficientes. Esses atores eram incríveis! Mudavam mesmo o humor de todos ao redor. Era tanto amor, tanto amor que transbordava.
    Na mesma época iniciei um projeto, um jornal para circulação interna. Fiquei noites pensando em como fazer um jornal sobre câncer que fosse leve, agradável de ler e não deprimisse ninguém. Comecei pelo nome Boas Novas, a ideia era só dar notícia de novos remédios, tratamentos, eliminação de tumores, entrevistas com médicos, pesquisadores, pacientes, familares. Não sei se o projeto continuou depois que saí de lá, mas que a ideia era boa, isso era.
    Também aprendi muito sobre oncologistas. Ao contrário de outros especialistas que tratam o paciente por pouco tempo, muitas vezes só numa emergência, o especialista em câncer passa meses, anos com a pessoa, conhece sua família, comemora cada vitória e sofre cada perda também. Minha admiração pela equipe era cada vez maior, diria inesgotável mesmo.
    Esse tempo foi muito enriquecedor, admito que chegou uma hora que meus assuntos preferidos eram as descobertas científicas, análises psicológicas dos pacientes e como o bom humor ajudava no tratamento. É chavão, mas rir é sim o melhor remédio. Ter acompanhado o tratamento e morte do Governador Mario Covas, trabalhado nesse Hospital foi como um aprendizado de espectador/coadjuvante de como a vida é delicada e rápida. Depois disso conheci muitas pessoas que tiveram a doença, algumas continuam combatendo, outras foram derrotadas. Por isso as lembranças de viver dentro do Hospital do Câncer são sempre tão atuais na minha mente, a cada amigo, familiar de amigo que tem câncer, penso nesses profissionais maravilhosos. Na batalha diária dos pacientes (alguns nem são tão pacientes assim) e todos que acompanham essas pessoas.
    A vida passa rápido, nem sempre é bela, muitas vezes a pessoa nasce, sofre e morre. Mas se de alguma forma eu, você que está lendo, pudermos ver beleza nos momentos tristes, tudo fica mais fácil. Achar graça na tristeza é uma arte e isso pode mudar tudo.

4 comentários:

  1. Eu sou paciente desse hospital há 8 anos e digo que o que menos encontro lá é tristeza... :) os cheiros, os corredores, as pessoas, me é tudo tão familiar como minha casa.

    Estar doente não é uma opção, mas sofrer com isso é. E eu me recuso a sentir qualquer dor além daquela que não tenho escolha.

    Adorei o texto :)

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    1. Fico tão feliz em saber que esse lugar de referência continua com o mesmo otimismo e alegria. Adorei sua frase "recuso a sentir qualquer dor além daquela que não tenho escolha", isso dever ser a escolha da vida. Grande abraço e obrigada!

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  2. Como diria Rilke, que possamos ser poetas suficiente para no cotidiano, evocarmos nossas riquezas!

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  3. Guilherme,

    Que possamos continuar vendo beleza em tudo!

    Abraços

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