terça-feira, 9 de outubro de 2012

A Essência Impregnada

    Comecei a arrumar gavetas e caixas de Dora. Há mais de 20 meses está tudo intocado, o quarto tem movimento porque dormem hóspedes, passeiam gatos e os brinquedos e roupas de Miranda estão guardados lá. Mas nem as duas caixas de Barbies são muito usadas. Miranda prefere bebês e bichinhos de pelúcia. Tem vezes que abre as gavetas da irmã desaparecida, escolhe alguns vestidos e os veste. Não é que muitos deles já servem nela? Como é grande essa Miranda! Roda sorridente com os vestidos de Dorinha, mas começo com espirros descontrolados, devido às inúmeras alergias desenvolvidas desde que perdi minha filha mais velha. É imensurável a dor de nunca mais ver quem você gerou, pariu, amamentou e por 9 anos viu crescer... é o oco do vazio ver as roupas e imaginar de que tamanho estaria agora essa criança. Dói tão dilasceradamente que o corpo só pode reagir com aversão.

    Parece o relato da mãe de um filho que morreu, eu sei. Também sei que minha filha está viva (ao menos não fui comunicada do contrário), mas não fazemos mais parte uma da vida da outra desde que Dora foi apreendida, na busca feita em sua escola, no dia 10 de fevereiro de 2011. Minha filha foi apreendida e levada e ponto. Impedida de ver sua mãe, sua irmã, seus amigos. Impedida de usar suas roupas, brincar com seus brinquedos, expressar seus sentimentos e suas vontades. Isso não é um tipo de morte? Isso não é um assassinato? O que fazem com Dora é muito pior do que fazem comigo. Continuo sendo mãe. Ela perdeu a mãe. E também a irmã, a mesma que agora dança com suas roupas e folheia os seus livros. Há 20 meses Dora parou de ver Miranda crescer. Nem imagino quando se encontrarão de novo. Tão pouco a surpresa de ambas, ao perceberem o quanto estão mudadas. Posso ter uma leve ideia pelo que aconteceu ontem, quando Miranda viu a capa do DVD Harry Potter e a Ordem da Fênix. Me perguntou porquê os três estavam tão estranhos, expliquei que cresceram. "Será que Dorinha também vai estar assim?"
    Como se já não bastassem as tristezas e dramas inevitáveis da vida, me obrigam a suportar o absurdo de ter duas filhas proibidas de conviver, de brincar, de amar! Irmãs proibidas de crescerem juntas! Quem deveria defender os direitos das crianças? Realmente não sei o que acontece, não entendo o tempo, a demora... será que os profissionais de Vara de Família ainda não entenderam que as crianças crescem? Será que não entendem que o magistrado não nos faz favores? São todos funcionários públicos! Para quem Miranda e Dora irão reclamar quando souberem que foram impedidas de viver juntas? De participar da festa de aniversário uma da outra? Ou fazer a festa juntas, já ambas nasceram em fevereiro, com 7 dias de diferença.
    Entre minha indignação, misturada com revolta, torturada de saudade... encontro um caderno que Dora me deu, no nosso último Dia das Mães, em maio de 2010. A cada página um desenho mais lindo e colorido, com mensagens e declarações de amor, entre elas, uma que me fez chorar aos soluços: "Mamãe, você me dá tudo o que eu preciso: amor, carinho, aconchego, proteção e é por isso que te amo tanto". Também encontrei uma redação, O Cão Herói, onde conta, como uma repórter, a história de um destemido cão, que salvou 14 pessoas numa enchente na cidade de São Paulo, com datas, endereços e nomes. Então passei do choro ao riso, pensando na minha influência sobre a cria. Dora sempre gostou de escrever e fazer perguntas e sempre me viu resgatando animais abandonados. A verdade é que atos ficam muito mais impregnados do que palavras.
    No meio dos cadernos da escola de Dora caiu um cartão postal. Era de Gramado (RS), datava de 7 de julho de 1991. "Adriana, estou aqui em Gramado fazendo um curso. Tem pessoas elegantes, cultas e está tudo super interessante. Estou bebendo muito vinho. Faz frio. Saudades de você e de seus pais. Beijos para você e para a dona Laura. Do amigo, Gustavo Liedtke". A amizade com essa pessoa gentil, amável, inteligente e muito espirituosa começou em Ribeirão Preto. Nos conhecemos na faculdade Unaerp, em 1989. Adolescentes que dividiam o tempo entre estudos, inclusive da língua alemã, saídas, viagens e festas. Engraçado era quando nos chamavam de herdeiros, porque nos consideravam muito ricos.
    Nesses mais de 20 anos sempre tivemos notícias um do outro, mesmo quando esse criativo publicitário foi morar na China. Gustavo chegou a conhecer Dora quando ainda era bebê. Depois, com tudo isso que virou minha vida, nos perdemos um pouco. Por essas maravilhosas coincidências do destino, nos reaproximamos mais do que nunca no ano passado, no que posso chamar de a pior fase da minha vida. O humor sarcástico dele em muitos momentos me tirou das lágrimas. O pai dele também faleceu em consequência do Alzheimer, por isso soube exatamente o que me dizer quando o meu se foi. Gustavo trabalha hoje numa importadora de vinhos e continua bebendo com maestria, tornando o hábito, uma arte. O que tenho aprendido com ele sobre enologia é para uma futura tese.
     O que mais me emocionou neste cartão é perceber que a nossa essência continua a mesma. Quanta gentileza, carinho e amizade estão contidos nele. A delicadeza de lembrar-se de meus pais. O comentário sobre a elegância e cultura das pessoas. Assim, também a essência de Dora está impregnada nela, sua generosidade, gratidão, amor, bondade. Por mais que 20 anos se passem.
    
   

5 comentários:

  1. Mais do que amigos como vc disse, o amor, prevalece! Vamos ver então o que o pseudo pai terá como lembranças de todo o mal que vem praticando para vc e sua filha Adriana. Ai sim, será hora de dor, agonia, rancores, doenças... e olha que nem preciso desejar.

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    1. Ah... mas os rancores e agonias e dores e doenças estão todos comigo agora...

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  2. muita muita tristeza e dor no peito de saber que este tempo mágico da infância e (pré) adolescência em que as irmãs poderiam estar convivendo enquanto crescem, e vc como mãe acompanhando ambas, isso se perde, não volta...

    mas ao mesmo tempo muita fé na essência de Dora impregnada por tudo, Dora é ela, daquele jeitinho, porque felizmente conviveu com vcs na fase mais fundamental de formação de sua personalidade, e isso não se perderá, não isso, não a Dora em sua essência...

    beijo com todo nosso amor, conte conosco sempre

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    1. Sim, não volta e já está tudo perdido. Mesmo que um dia eu consiga a guarda de volta (algo cada vez mais distante, já que não consigo nem falar por skype), a dor também faz parte dessa nossa essência, Dora sofre ha muitos anos... isso não tem volta!

      Hoje tive mais uma enorme decepção, cada vez me sinto mais fraca, está tudo indo de mal para pior. Pior do que lutar pelo que se quer é desistir porque não consegue mais sofrer... já dizia Bob Marley. Estou nesse ponto, da desistência...

      Bjs e q vcs aproveitem bem a infância da Ynaê, a melhor e mais curta fase da vida!

      Bjs

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  3. São coisas que não me conformo.
    Talvez eu já tivesse enlouquecido, talvez não.
    É complicado dizer algo qdo a dor toma nossas palavras.
    Complicado desejar q continue sendo forte.
    Que força vc tem aí a não ser o amor pelas suas filhas?
    Sinto tanto em ver sua dor, sinto ela em mim tbm.
    E desejo apenas q isso acabe logo.

    Beijos

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