sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

14 Bis: A Prova Mais Difícil

  Chequei mais uma vez a mochila antes de dormir: dois oclinhos, dois maiôs, duas tocas, roupão, vaselina, toalha, agasalho e roupa para trocar. Deitada não conseguia dormir, respirava fundo e pensava no que nosso técnico, Guaracy de Moraes, disse em várias reuniões com a equipe durante a semana. Precisava nadar até o Largo do Candinho até o meio-dia, pois a maré virava e quem não chegasse era obrigado a desistir da prova.  Respirei fundo mais de mil vezes, tinha muita dificuldade em dormir antes de competições importantes, me faltava o ar. A maratona aquática 14 Bis tem 36 Km e eu tinha apenas 11 anos.  
   Acordei às 6h, tomei o café da manhã mega reforçado e segui com meu pai, que tinha alugado uma espécie de catraia para me acompanhar.  Se hoje o esporte amador deixa tanto a desejar no Brasil, pensem em 1981! Meu pai, também nadador, era a melhor pessoa para estar ao meu lado nessa prova.  A largada, na Base Aérea do Guarujá, foi pontualmente às 8h. Como ainda vivíamos na ditadura militar, antes houve bandeiras, hino nacional e militares falando.  No início tinha até helicóptero sobrevoando o percurso, aos poucos até os barcos foram minguando.
   Eu e minha amiga/irmã/companheira Rosane Mendes combinamos de nadar juntas. Ela nadava bem mais rápido do que eu, mas nosso objetivo era manter o ritmo e chegar o mais longe possível. Dentro do maiô eu levava alguns doces de leite. E parava para tomar sopa batida, com legumes e carnes, no copo, que pegava sem encostar no barco, para não ser desclassificada. Durante a prova os nadadores vão se afastando e não havia fiscalização que desse conta de todos, mas nós éramos tão disciplinados que seguíamos as regras, mesmo quando ninguém estava olhando. Minha meta era nadar sem parar até o meio-dia. Rosane, que era mais magra, começou a sentir muito frio (a água era gelada). “Vamos nadar mais rápido para esquentar”, eu repetia, com egoísmo, porque queria minha amiga ao meu lado. Mas não teve jeito, ela subiu no barco do meu pai e seguiu me apoiando de cima. 
   Passei do tal Largo do Candinho, já na Bertioga, antes da maré virar. Então relaxei e comecei a acreditar que poderia terminar a prova.  Meu pai, percebendo que eu estava bem e preocupado com os outros atletas, disse que iria um pouco para trás, porque nessa altura as distâncias entre os nadadores eram de 2 a 4 km. Me vi sozinha nadando num rio escuro, o céu cinza, montanhas enormes, pássaros voando. Nadava de costas para apreciar a paisagem, mas era tudo tão grandioso que me sentia mais sozinha. Meu pai não demorou mais do que 10 minutos, mas era uma eternidade. Me sentia tão mais segura só de saber que ele estava por perto.  Voltou meio triste porque o pessoal de trás estava desistindo.  O mais lindo no meu pai é que ele não torcia só por mim, incentivava a todos.  
  O pior momento foi quando nadei na margem e raspei a perna em mariscos. Já estava tão cansada que nem percebi estar perto da margem. Doeu, arranhou, sangrou e ardeu, mas a dor muscular já era tanta que a da pele foi pouca.  Perto das 17h meu pai deu uma volta de barco um pouco para frente e para trás, na volta me perguntou: “Você acha que consegue chegar?”. Sim, meus braços ainda rodam, minhas pernas batem e eu respiro. A chegada tornara-se meu objetivo de vida. “Então, filhota, se você completar será podium. Só três nadadoras continuam na prova”.  Foi uma injeção de ânimo! Por mais que o jargão diga que o importante é competir, receber troféus e medalhas é o reconhecimento do esforço, é a glória. 
   Lá pelas 18h, já escuro, enxergo as luzes da cidade. Faltava pouco, muito pouco. Então cheguei. Fui levada direto para uma ambulância, medir pressão, pesar, alimentar. Havia emagrecido pouco mais de 4 kg. Premiação, abraços, aplausos, entrevista. Me senti tão importante, no sentido das pessoas se importarem mesmo comigo. Meu pai não se aguentava de satisfação. Era como se eu tivesse realizado um sonho que ele não teve oportunidade de concretizar. Quando chegamos em casa passava das 22h, minha mãe estava preocupada. Explicamos que tivemos de esperar a premiação, mostrei meu troféu. Ela custou a acreditar que eu havia nadado 36km e ficado em terceiro lugar. Quase chorou quando viu minhas costelas à mostra. Era difícil para ela entender o metabolismo de atleta, já que não acompanhava treinos, nem competições. Em dois dias eu já havia recuperado meu peso. 
   Após esse feito senti que conseguiria fazer qualquer coisa, que minha mente não tinha limites e chegaria onde quisesse. Há muitos amigos nadadores que dizem não haver registro de alguém tão jovem completando uma maratona aquática dessa distância, que eu deveria procurar o Guines Book. Não sei se precisaria de tanto, antes bastava eu saber do que sou capaz. Só quis registrar aqui esse momento histórico da minha vida para que algumas pessoas saibam que não desisto fácil, que minha resistência é maior do que a maioria das pessoas.  O grande vencedor é o que volta quando todos pensam que fracassou.
  

4 comentários:

  1. Lindo, lindo...linda vc já sabe que tenho orgulho de tudo que vc foi, é e ainda será. Neste momento vc pode não enxergar o futuro, está tudo nebuloso, parece que não tem fim...mas eu vejo vc feliz, realizada...uma escritora maravilhosa, premiada...quem sabe um Jabuti. Escreva, esta é sua vida...escrever e encantar e emocionar seus leitores.
    Força amiga, vc consegue tudo que desejar!!!! te amo....

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    1. Olha, minha amiga querida, muitas vezes tenho de pensar em tudo que já fiz e realizei para ter alguma esperança que as coisas mudem... agradeço todos os dias pelas broncas de técnicos, a água gelada, as dores nos braços... não fosse isso, já não estaria aguentando... e que todos os seus desejos se realizem, te amo!

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  2. Putz, adoro esses relatos, e 36km com 11 anos deve ser recorde mesmo!

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    1. Renato, também adoro ler seus relatos em seu blog (de todos nós, como vc diz), a gente que ama natação se emociona com isso. Li que saudosismo é uma forma de não envelhecer, então seremos sempre jovens, assumo meu saudosismo de uma época incrível que nos preparou para enfrentar obstáculos e nos trouxe amigos para toda a vida. Master 2014, me aguarde :) Bj

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