quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

A Competição em que Deram o Sangue

    Era o Campeonato Sul-Americano de Master de Natação, em Vitória/ES, em setembro de 1998. Tudo corria bem, cidade linda e sempre ensolarada, piscina boa, nossa equipe muito divertida e sempre com nadadores entre os oito primeiros. Para quem não sabe o master começa a partir dos 25 anos, com a categoria master A (25 a 29) e assim sucessivamente, até os resistentes veteranos que passam dos 90. Na categoria master conseguir manter o mesmo tempo já significa melhorar e quanto mais master, melhor!
   Tudo corria bem até que pelo alto falante recebemos a notícia de que o velejador Lars Grael, participando de uma competição na mesma cidade, tinha sofrido um grave acidente, corria risco de morte e precisava de doação de sangue. No nosso sul-americano havia cerca de 800 atletas e as arquibancadas foram esvaziando. As ambulâncias de plantão para nossa competição seguia lotada de atletas para o hospital. Os nadadores que não competiriam naquele período foram fazer a doação.
   Pouco mais de meia hora depois ouvimos no alto falante o agradecimento, pois o hospital tinha estoque de sangue para meses. Não apenas brasileiros, mas atletas de vários países foram doar sangue. Não fui porque nadaria e não tinha peso. O masculino foi em peso. Só depois soubemos da amputação, do acidente cometido por um “piloto” bêbado que ultrapassou a faixa que delimitava a competição no mar. Passado o susto e após a recuperação de Grael essa competição passou a ser conhecida como aquela em que os nadadores deram o sangue, literalmente. Algo trágico tornou-se um exemplo de solidariedade, de amor sem fronteiras.
   Mas além desse fato tão conhecido, outros aconteceram nessa competição, que me marcaram muito. No nosso hotel, tinha uma equipe da Argentina, adoro nossos hermanos latino-americanos e tenho muito carinho pelos argentinos. No café da manhã era uma confraternização linda. No segundo dia de competição acordei mais tarde, pois só nadaria no final da manhã e quando desci, havia acabado parte da refeição. O pessoal do hotel pedia desculpas, pois não sabia o que era uma fome aquática. Atleta come muito, mas os aquáticos comem mais! Só nesse dia me dei conta disso.
   O mais legal do master é que não há cobrança de técnicos por tempos bons e vitórias, a cobrança é nossa para nós mesmos. Por isso dá para sair, se divertir e conhecer um pouco da cidade, coisa que não acontecia até o Juvenil. Na noite anterior ao último dia de competição saímos para dançar. Uma das cenas mais engraçadas de feminismo que presenciei foi protagonizada pela minha linda amiga/irmã Flavia Vieira. Um rapaz do tipo folgado a puxou pelo braço e deu uma daquelas cantadas baratas. Muitas mulheres ficariam sem graça, algumas podem até cair nessa ladainha besta. Mas Flavia simplesmente o empurrou e deu um tapa na cara. E olha que a garota além de linda, era forte! “Como assim você nem me conhece e vem me pegando?”. Nossos amigos nadadores (sempre grandes e de ombros largos) se aproximaram para saber o que havia acontecido. Ninguém precisou defendê-la, Flavinha já havia dado conta do recado.
   Acordei exausta de tanto dançar e ainda me restava nadar 200m costas e um revezamento. Flavia acordou tarde de propósito para perder os 200m de peito, uma prova muito difícil, para quem não sabe. Preferiu se guardar para o nosso revezamento. Tentei me atrasar também, mas cheguei na hora em que distribuíam os cartões de balizamento para os 200 costas. Repetia que não teria pernas para completar a prova e eu era master A, a categoria mais disputada, com os melhores tempos. Estava morrendo de medo de dar vexame. Foi quando vi uma nadadora mais velha, umas duas categorias acima da minha, sem uma das pernas, alongando-se para a mesma prova. Mesmo com deficiência, ela competia com os “normais”.
   Me senti um monstro por repetir que não teria pernas para nadar. Pensei em Lars Grael na UTI. Olhava para essa nadadora tão compenetrada. Então corri para pegar meu cartão, estava na última série (a mais forte). Alonguei o quanto pude, coloquei minha toca e nadei fácil, gostoso, alongada. Não me preocupei com quem estava do lado, só queria nadar bem e sentir minhas pernas. Fiquei em sétimo lugar e dei o melhor tempo da minha vida, nem aos 15 anos dei tempo igual. Mesmo tendo competido e viajado tanto pela natação, essa competição me vem sempre na cabeça, quando penso em parar, em desistir ou no significado de presentes. Sangue pode ser o melhor de todos os presentes. Sentir dores nas pernas e braços é a dor mais desejada para quem perdeu um membro. Desde então, penso muito antes de reclamar dores físicas. E sempre lembro dessa nadadora, que nem sabe, mas tanto me incentivou. Depois da prova fui abraçá-la. Ela ficou em quarto lugar na sua categoria.

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