quinta-feira, 22 de novembro de 2012

As Figuras Ilustres do Bronx

    Chegou uma hora em que decidi morar em São Paulo. Era lá que tudo acontecia e queria consolidar uma carreira, que mal tinha começado. Fui morar com Lúcia Rabelo Lemos, publicitária, amiga de uma amiga, num apartamento carinhosamente batizado de Bronx. Ficava na rua Eça de Queiroz, perto do metrô Paraíso. Nome de escritor célebre, bem localizado, um quarto só para mim, fui para lá animada. Lúcia era a primeira mulher e não santista a morar no local. Quando soube que eu era de Santos disse que voltaria a ter "panelinha". Quis saber como ela, que era de Bauru, foi parar lá. Foi por conta do então namorado Marco Bola, também publicitário, um agregador de pessoas, um cara sempre lembrado porque sempre lembra de todo mundo.
    O prédio era antigo/velho, o interfone não funcionava, então quem chegava tinha de ligar do orelhão da esquina, não havia elevador e não batia sol nos cômodos. Quando meu querido pai foi me ajudar na mudança ficou deprimido, por me ver num lugar assim, tão decadente. Mas eu o tranquilizei, pois era o que meu salário poderia pagar e eu ficava o dia todo trabalhando, era mesmo para tomar banho e dormir. Mas o Bronx era muito mais que uma simples pousada, em sua decrepitude habitava também seu maior charme. Na parede do meu quarto estavam alguns homens aranhas grafitados. Lúcia disse que eu  poderia pintar, mas apesar de remeter ao universo masculino, gostei de ter esse super herói (o meu preferido) nas paredes. Pintei o resto da casa e para me ajudar estavam os amigos Alexandre Strâmbio, músico e publicitário, filho único como eu, e Yeis, o melhor dançarino rockabilly visto em toda minha conturbada vida: topete engomado, óculos anos 50, calças apertadas, era meio parecido com Nicolas Cage. Generoso, Yeis me ensinou muitos passos e me trouxe a alegria dos Stray Cats e Violent Femmes, além de Kães Vadius. Esses dois figuras moravam no ABC Paulista e eram meus amigos da Metodista, onde fiz faculdade.
   Uma tradição no Bronx era fazer um evento para apresentar os antigos aos novos moradores e assim marcamos uma "festinha" no meu aniversário de 24 anos. Fui receber o primeiro convidado. Com inevitável espanto abri a porta para Alexandre Cid Pedroso, que havia nadado no Vasco da Gama, de Santos, meu clube do coração. Claro que ele não lembrava de mim, porque eu havia mudado muito nos últimos 12 anos, mas ele estava igual, aliás, mais bonito. E era ele o autor da arte nas paredes do meu quarto! Depois chegaram Daltão (Dalton Vigh) e Daltinho (Dalton Flemming). Dois amigos, ex-moradores e também frequentadores do Bronx, um com 2 metros de altura, outro nem tanto, daí os apelidos para saber quem era quem. Além dos nomes, os dois tinham em comum o bom humor, sorriso largo e simpatia estampados no rosto. Cada um que chegava, me deixava mais "embasbacada" em como um lugar como aquele conseguia concentrar tanta gente interessante por metro quadrado. A maioria dos ex-moradores do Bronx era ligada ao mundo da publicidade e das artes, eu era a primeira jornalista do pedaço.
    Também foram chegando meus amigos, muitos músicos e jornalistas. Acabei perdendo alguns convidados e quando entrei no quarto da Lúcia, vi um cara de óculos com aros pretos, jaqueta de couro, cara de poucos amigos, meio nerd, meio artista, baixo, magro. Era André Gomes, por quem senti uma atração imediata. Percebi que não estava para conversa, mas como era o meu aniversário, fiz ele falar um pouco. Artista plástico, editor de arte da revista Terra, rock, puro charme. Histórias tristes de amor e desilusão. Ok, era por esse que eu ficaria apaixonada...
    Minha vida nesse período foi muito rica em cultura pop e bons amigos. Bola tinha o livro do Bronx, de capa dura e preta, que ficava na sala para quando alguém tivesse inspiração pudesse escrever ou desenhar. Quando eu chegava cansada e estressada da Folha da Tarde, após mais de 12 horas de trabalho no caderno de Cidades, cobrindo acidentes, tráfico de drogas, massacres e chacinas, era no Livro do Bronx que eu extravasava minha veia poética e romântica. Devo ter escrito uns 2 volumes!
    Estávamos nos anos 90 e como todo jovem rock eu adorava Nirvana e Pearl Jam. Com Marco Bola aprendi amar Chico Science e todo o movimento mangue beat. Não consigo lembrar quantos shows eu fui nesta época, certamente uns dois por semana, dos grandes aos pequenos. Outro frequentador assíduo era o Tiko (Antonio Carlos Rocha), meu companheiro de muitos desses incontáveis shows. Divertido, cênico, inteligente, perspicaz, beberrão e de apuradíssimo gosto musical. Tiko era filho do Mussum, meu trapalhão preferido. E quando Mussum ficou doente e internado, Tiko ia do hospital direto para o Bronx, dormia lá quase sempre, me passava o boletim médico diário e eu sofria junto com ele. No dia da morte do Mussum me mandaram fazer a matéria. Não quis ir, sabia que iria ver o Tiko e deixaria de ser jornalista para ser apenas amiga. Pedi que enviassem outro repórter. Carla Conte foi a escolhida para a missão. Voltou com os olhos inchados de tanto chorar e me disse: "Dri, todos os jornalistas presentes se emocionaram como se o Mussum fosse um parente querido". Na verdade era.
   A Copa de 94 foi inteiramente assistida no Bronx, com todas essas pessoas reunidas, torcendo, se contorcendo e chorando juntas. A atriz Einat Fabel, do Grupo Tapa, na época namorada do Daltão, também ia nos jogos e festas. Lembro dela chorando na final e nem gostava tanto assim de futebol. Uma figura muito talentosa, expressiva, cheia de caras e bocas. Quando o Brasil venceu por pênaltis, de forma sofrida, foi a deixa para roubar um beijo do tal André, um tímido. Mas só fui me apaixonar de verdade quando vi seus lindos quadros. O apartamento dele era só de telas e tintas.

    Saí do Bronx porque me chamaram para trabalhar na TV Tribuna, de Santos. Mas coloquei Célia Payão, outra publicitária, para me representar. Lucia e Célia imediatamente ficaram amigas. Adoro apresentar meus amigos e torná-los amigos também. Célia tocava gaita e violão. Também cantava e encantava com seus olhos esverdeados, pele marrom e sorriso largo. Tingiu as paredes do Bronx de azul, branco e amarelo, mas manteve o homem aranha, porque já era patrimônio da casa.
    Como o filho pródigo, voltei em 1996, quando saí da TV e comecei no caderno de Cultura do Diário do Grande ABC - um post a parte - e Célia saiu para outros projetos. Na mesma época, Juliana Figueiredo, minha amiga de infância e natação, queria sair da república que dividia com as colegas da faculdade. Por isso a chamei para dividir o quarto comigo. Uma engenheira no meio desse bando de artistas e boêmios? Daria certo? Seria um peixe fora d'água? Não, porque Juliana até conhecia o Ale Cid Pedroso das piscinas. E mesmo dormindo e acordando cedo, sem beber, sem fumar, sem ser baladeira, é uma pessoa sem preconceito e de fácil convivência. Afinal, para quem passou a infância e adolescência em alojamentos ou ficando em casa de atletas de outras cidades, dividir o quarto com a amiga de sempre, é moleza. Foi muito bom tê-la no Bronx.
    Após um período  meio turbulento, mudei de lá. Não lembro quem foi o último a sair e apagar a luz. É o que menos importa, temos fotos, o Livro, que tenho certeza estar bem guardado com Bola, um colecionador perfeccionista. Também tenho todas as lembranças. Essas pessoas? Continuaram dando seus vôos, em grupo ou solo. Muitas encontrei em novos caminhos, algumas vejo na TV ou nos palcos,  outras continuam minhas amigas para sempre. Todos, sem exceção, são ilustres. Quem passou por lá, jamais esquecerá, assim como nunca esqueci.
  

2 comentários:

  1. Querida Adriana,

    Como é bom poder relembrar o inesquecível Bronx sobre outro olhar. Valiosas lembranças, muito obrigado pelo seu carinho.
    Quanto aos Livros do Bronx, estõo comigo sim, bem guardados e com suas páginas folheadas até hoje.

    Beijos

    Bola

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    1. Tinha certeza, mais que absoluta, que os volumes estariam bem guardados e sendo folheados por vc, afinal um colecionador de verdade aprecia suas coleções, gosta de deixá-las expostas para que mais gente também aprecie. O Bronx é inesquecível pra mim, assim como todas as pessoas que habitavam aquele lugar.

      Grande bj

      Dri

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