segunda-feira, 25 de abril de 2011

O Nadador Exemplar

  A natação entrou na minha vida aos 6 anos porque meu pai nadador quis que eu estudasse numa nova escola do Guarujá, com piscina de 25 metros. Eu engolia água, meus olhos ardiam, achava muito difícil rodar os braços, flutuar, bater as pernas e respirar ao mesmo tempo que meu corpo adaptava-se ao ambiente novo das águas geladas (nos anos 70 não existia piscina aquecida). Era um sofrimento tudo aquilo, mas meu pai dizia que morar no Litoral e não saber nadar era o mesmo que ter um restaurante e não poder comer - ou coisa  parecida. E disse mais: quando eu atravessasse a piscina poderia parar de nadar! Então me esforcei para superar logo esse obstáculo. Mas no dia que atingi essa meta, me senti tão vitoriosa e feliz que busquei muito mais. Minha maior dificuldade foi aprender a mergulhar. Como em tudo na minha vida, não consigo entrar de cabeça, analiso o movimento, a situação, até hoje é muito difícil me entregar. Mas um dia, depois de provocar muitas risadas em técnicos e amigos, aprendi a mergulhar e minha largada tornou-se um dos meus maiores trunfos.
  Depois de ter destaque em campeonatos estudantis estaduais fui nadar no Centro Esportivo do Guarujá e comemorei 11 anos em Jacareí, nos Jogos Regionais de 1981! Como era nadadora reserva pensei que seria só festa, participar em espírito, mas não em corpo. Era a mais nova da delegação da minha cidade, os atletas de outros esportes me enchiam de mimos e brincadeiras fofas, até que me colocaram para nadar 200 metros de peito! Fim de junho, a água muito gelada, arquibancada lotada e muitos gritos de incentivo para minha prova. Nunca meus braços e pernas doeram tanto, me faltou o ar, dei meu melhor tempo e cheguei em último lugar... mas isso não me abateu. A natação não é só uma disputa com o adversário, é uma disputa com você mesmo. E essa eu venci! Tive mais confiança de tudo que era capaz de conseguir.
  Como o Guarujá ainda não inscrevia atletas na Federação Paulista, eu nadava também campeonatos de Aprenda a Nadar. Claro que ganhava todos, pois já alcançava marcas para campeonatos oficiais. Com esse panorama, assistentes técnicos de clubes santistas convidaram a mim e minha inseparável amiga Rosane Mendes (com a mesma trajetória) para nadar em Santos. Sim, queríamos ir, com pesar nos separaríamos de nossos colegas de braçadas, mas iríamos juntas para algo mais desafiador. Rosane queria ir para o Clube Vasco da Gama, que tinha a melhor equipe de Juvenil, sua categoria. Eu preferia o Saldanha da Gama, pois ainda tinha 2 longos anos como Infantil e a equipe deles era a melhor de Santos nessa categoria. Entramos em um acordo: depois de assistir o Campeonato Santista Absoluto, decididíramos. A mãe de "Zaninha" e meu pai davam carta branca e apoio incondicional. Eram muito participativos.
  Noite quente no Vasco, a prova era 1.500 metros livre masculino. Não sabia quem estava nadando, mas dois atletas disputavam braçada a braçada. Até que um deles foi aumentando o ritmo, seu estilo era imperfeito, mas quanta força! Na chegada, com mais de meia piscina na frente, esse nadador tira os oclinhos, vê que quebrou o recorde da prova e abre o sorriso mais lindo do meu universo. Quem era? Onde nadava? José Ricardo Carvalho de Oliveira, então com 16 anos, era atleta do Clube de Regatas Vasco da Gama. Essa prova e esse sorriso nortearam meu destino a partir de então.
  Nadar no Vasco formou parte do que é minha personalidade hoje. Trago de lá alguns dos meus melhores momentos, amigos que até hoje acompanham minhas aventuras e desventuras, fiz viagens inesquecíveis, incríveis, conheci pessoas fantásticas, participei de competições acirradas, venci, perdi, aprendi. Fazer parte de uma equipe como aquela era mais que praticar um esporte, era integrar uma enorme família, sofrer junto, vibrar junto. Minha paixão pelo Zé Ricardo foi só mais um capítulo dessa história. Mais que o sorriso encantador, tinha o coração valente, humor sagaz e muito charme. O garoto moreno ainda tinha voz rouca... como não me apaixonaria? Mas eu era uma criança e ele quase um adulto! Com 13 eu já era fisicamente o que sou - quer dizer, muito melhor do que sou hoje - e ele viu com outros olhos a minha pessoa. Durante 2 anos demos muitos beijos escondidos (ele sentia vergonha por eu ser tão novinha, essa é a verdade), tive a minha primeira paixão semi-correspondida, meu primeiro coração na boca e pernas bambas. Minhas primeiras lágrimas de amor!
  Depois de dois anos ele começou a namorar uma bailarina, com quem ficou por mais de 10 anos até se casar. Eu tão cabelo com cloro, ela tão coque e rabo de cavalo. Eu tão abrutalhada, ela tão delicada. Demorei longos 6 meses para superar isso. Ora, 6 meses soa como eternidade para uma adolescente de coração partido. Ainda nos econtramos nos treinos de pólo aquático, esporte que pratiquei, assim como o Zé Ricardo, depois de parar com a natação. Ele continuava com o sorriso lindo!
  Aos 30 anos, o meu inesquecível primeiro amor, morreu num trágico acidente de carro, quando subia pela Imigrantes, numa noite de muita chuva, para pilotar um avião - sim, ele virou piloto. Era casado com a bailarina e tinha uma filhinha de 2 meses.  Na missa de sétimo dia encontrei nadadores do Brasil inteiro. Encontrei sua irmã Ana Claudia, uma querida amiga, que igualmente encantadora, me abraçou sorrindo: "- Só o Zé pra me fazer te encontrar de novo". E com muitas lágrimas tentei consolar aquela irmã caçula e coruja, com um buraco imensurável no peito.
  Eu tinha 25 anos e vivia outra vida, como jornalista boêmia, ficava acordada até tarde, fazia plantões de madrugada, dormia pouco, me alimentava mal, com pressa, tive ácido úrico que detonou meus pés aos 23 anos, por estresse! Ver todos aqueles bons e velhos amigos, naquela celebração mórbida, foi um tapa na cara. "Quem sou eu agora? O que me tornei?"
  Após sua partida, tive muitos sonhos com  o Zé Ricardo, ele estava sempre no meio de uma piscina enorme, num dia ensolarado, me chamando  para mergulhar. E eu mergulhava de cabeça e nadávamos juntos até eu acordar literalmente cansada, com braços doendo. E de tanto nadar em sonhos, voltei às piscinas, como master, no mesmo fatídico ano de 1995. Esse nadador exemplar me trouxe de volta para a vida. Porque pessoas assim nunca morrem nas nossas lembranças. Hoje uma tradicional travessia da Baixada Santista leva seu nome. Jovens atletas nadam a travessia José Ricardo Carvalho de Oliveira sem saber que homenageiam não só o atleta que colecionou títulos, mas o nadador que amava nadar, que conseguia esses títulos não por talento nato ou técnica perfeita, mas por muita dedicação, esforço e vontade. E que sua coleção de amigos era ainda maior que de medalhas. E que seus curtos anos na Terra valeram por muitas vidas. E que mesmo não estando aqui, me fez voltar na minha essência de disciplina, persistência e irmandade. E eu nunca pude agradecer.

10 comentários:

  1. Valeu Adriana.
    Uma Homenagem fantástica ao amigo fiel Zé Ricardo.
    Antes de lamentar a sua falta, prefiro agradecer a Deus por ter compartilhado, dentro e fora das piscinas, da sua alegria, da sua amizade e principalmente da sua luz.
    Um abraço meu amigo, onde quer que vc esteja.

    Ary Fonseca Júnior

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    1. Ary, que saudade... só agora lendo posts antigos vi seu comentário, obrigada! Bj

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  2. Ah, que saudades desta época, onde sonhavamos com nosso futuro...imaginava no ano 2000, ter 32 anos...que velha!!!!
    Tempo maravilhoso, temos que agradecer ter vivido todos estes momentos. Conhecido todas estas pessoas.

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  3. Só sabe o que foi a época do Vasco quem passou por lá! Fizemos amigos de verdade que até hoje podemos contar! A alegria do Jose Ricardo ainda vem muito forte em minhas lembranças. Que Deus te ilumine aí do outro lado Zé, vc é uma pessoa que eu ficaria feliz de encontrar quando voltasse para aí... E vc Adriana, quanta saudades de ficar a tarde jogando conversa fora em Boissucanga ou em seu ap no Guaruja, que aperto no peito... Saudades de vc amiga! Calma que o que tiver que ser, será. Força e fé, beijos do TATOO (apelido que me deram no Vasco e carrego até hoje com muito orgulho)
    Alexandre de Oliveira - Tatoo

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    1. Caramba Tatoo, só estou lendo esses comentários agora e isso tudo está me fazendo chorar... qta lembrança boa q vc também me trouxe... obrigada!

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  4. Minha amiga Adriana Mendes....nossa, que lindo que você escreveu...se nesse tempo vc era pré adolescente, eu estava começando as minhas braçadas...tb conheci esse cara LINDO que vc descreve no seu texto..e tb tive o prazer de ver esse sorriso maravilhoso do Zé Ricardo....que saudade grande dos vélhos tempos...nossa vida era um mar de rosas, nossos treinos eram deliciosos...eu comecei tudo no Vasco tb e tive o prazer de conhecer essa moçada...Tatoo, Simone, Rosane....eu só te peço...força e coragem e não desista nunca...NUNCA !!!!!
    Se cuide !!!!
    Ju

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    1. Ju... só lendo tudo isso agora! Saudade grande de tudo isso também...

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  5. Oi, sou primo do zé, sou filho do flávio, que foi criado junto com é zé e a claudia, o mais incrivel é que estava ouvindo supertramp essa noite e me lembro que no apartamento da epitacio pessoa, ele ouvia sempre essa musica no banheiro com as caixinhas de som, ai resolvi procurar pra ver se tinham coisas sobre o zé fora a travessia, e qual foi minha emoção ao ver um post de 3 dias atrás apenas falando a respeito dele, obrigado pelas palavras, se quiser entrar em contato eduardo_web@hotmail.com

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  6. Oi Adriana, vc me proporcionou uma viagem no tempo. Dividimos a piscina, a profissão, amigos e o privilégio de dias tão felizes. Isso não é pouco! bjs Liane

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    1. Não Liane, não é pouco! É muita coisa em comum. Vc era a garota mais rápida do clube e eu adorava torcer pra vc ganhar na chegada. Sempre correndo contra o tempo, vivendo um eterno dead line... não é à toa que viramos jornalistas! Bjs e saudade!

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