quinta-feira, 5 de maio de 2011

A Mãe que Amamentava o Filho

   No período mais doentio da minha vida presenciei uma das cenas mais tristes, dolorosas e humilhantes impostas a um ser humano. Falo de quando me obriguei a ver minha filha no Visitário Público de São Paulo, caso contrário ficaria sem vê-la até concluir uma perícia psicológica, o que pode significar um semestre nesse sistema tão burocrático. Eu via Dora todos os sábados, das 10h às 16h, no cárcere infantil já citado em outra postagem.
   Não lembro o motivo, mas troquei o sábado pelo domingo, ou foi a outra parte que trocou, minha memória não é exata nesse momento, porque esse domingo eu gostaria de esquecer, mas não consigo. Jamais esqueci e quando se aproxima o Dia das Mães lembro ainda mais.
  Era um dia abafado de novembro e no domingo aquela caixa de cimento ficava ainda mais cheia de crianças. Muitos pais trabalhavam no sábado e preferiam o domingo. Todos estavam muito agitados e suados, afinal os dois ventiladores de teto nem funcionavam. Eram só pais e eu de mãe e mais uma moça. Em um canto eu vi uma figura frágil, pequena e magrinha, com longos cabelos loiros e lisos. Ela estava deitada em um dos colchonetes daquele lugar insalúbre, devidamente coberto com um lençol de motivos infantis. Estava deitada com um bebezinho, que mamava vorazmente enquanto apertava o outro seio e olhava em seus olhos tristes e úmidos.
  Em um dos momentos que Dora ficou distraída brincando com a menina Vitória, me aproximei da moça. Precisava conhecer aquela história, como mãe e jornalista. Dei oi e ela me sorriu com lágrimas nos olhos, o filhinho já dormia, com aquela carinha de bebê satisfeito que foi bem nutrido pela mãe. O motivo de estar ali era tão cruel que me senti privilegiada por Dora já ter 3 anos!
  Separada logo após o nascimento do filho (nem fiz questão de saber o porquê), a jovem mãe entrou em depressão, talvez por se sentir sozinha com o bebê numa nova fase da vida onde é preciso 100% de dedicação física e emocional. Também estava desempregada e sua família não tinha muitas condições de ajudá-la. Numa tarde de sábado o pai do menino foi buscá-lo para passear. Ela ainda agradeceu, pois se sentia tão fraca que nem tinha vontade de sair de casa com o bebê. Anoiteceu e eles não voltaram. Ela entrou em desespero, ligou para todos os lugares possíveis e ninguém sabia o paradeiro do pai ou do filho. Ligaram para polícia e IML, nada. Isso fez com que ela comesse menos ainda e chorasse até desidratar. Alguns dias depois ela foi citada pela Justiça: o pai entrou com ação falando sobre a depressão dela e que poderia matar o filho e cometer suicídio! Mais uma vez um juiz decide separar mãe e filho baseado em suposições. O bebê estava com a mãe, mas ninguém tinha a guarda no papel, esse papel que vale tanto, vale mais que o amor. Esse juiz simplesmente passou a guarda para o pai, que pegou o bebê e mudou-se para São Paulo. Ah, um detalhe, a moça triste e bonita era de Curitiba.
  Essa mudança dificultou ainda mais o processo para ela, que aconteceria por meio de cartas precatórias, ou seja, qualquer ação que na mesma cidade demoraria uma semana, em outro Estado significaria 2 meses. Desesperada ela também recorreu ao Visitário Público! Como os custos de viagens seriam altos, via seu bebê a cada 15 dias. Junto com pessoas estranhas, observada por psicólogos, policiais militares e assistentes sociais. E amamentava o filho! Para continuar produzindo o alimento tão essencial, ordenhava-se e doava para bancos de leite.
  Só consegui abraçá-la e chorar. Dora veio correndo para saber se estava tudo bem com a "mamãe". Por que minha filha tinha que ver tudo aquilo? Talvez para já saber que no mundo tem muita gente boa, mas que os ruins são péssimos...
   Há mais de 5 anos a imagem dessa mãe me enche de emoção. Imagine uma mulher ser impedida de amamentar seu filho e pior, um pai cortar esse vínculo com a mãe. Mas essa mulher frágil era muito mais forte do que poderia supor. Mantinha seu leite para, de 15 em 15 dias, poder amamentar seu filho, afinal era o único momento que ele sabia o que era ter mãe. Nenhuma outra mulher faria isso por ele, só uma mãe com muito amor e coragem seria capaz de tanto sacrifício. E eu me perguntava onde estava o juiz que setenciou isso? Minha vontade era ir atrás desse homem tão justo, agarrá-lo pelo colarinho branco e levá-lo até o cárcere. Fazê-lo ver aquela cena. Uma mãe suicida que poderia matar o filho ordenha o leite para poder alimentar seu bebê quinzenalmente. "Olhe o que foi feito dessa vida". Mas vale lembrar que a Excelência só decretou a sentença porque houve uma outra parte pedindo. Não precisei perguntar o porquê da separação. Sem conhecer o pai só podia considerá-lo um ser desprovido de qualquer sentimento. E também entendi sua depressão.
    O bebê de 7 meses acordou e sorriu para a mãe. "Não era sonho meu anjo, você mamou, dormiu e vai poder mamar de novo". E foi o que ele fez. E me afastei para deixá-los naquele momento tão raro, tão íntimo e de tanto amor.
  Também tive depressão, também fui acusada de poder matar minha filha e me matar. E agora também tive minha filha levada para longe para dificultar ainda mais o processo. Pessoas cruéis existem em todos os lugares. Mães amorosas, que amamentam seus filhos, também. Nunca mais ousei ir naquele lugar no domingo. Passei a semana toda chorando ao lembrar dessa doce  mãe e do bebê impedido de ser amamentado. Só espero que hoje estejam juntos e felizes e que, diferente de mim, essa bela moça consiga esquecer.

4 comentários:

  1. estou em choque - nó na garganta, lágrimas nos olhos
    não consigo compreender tanta brutalidade, de indivíduos e instituições, diante de um caso como o que vc da jovem mãe e seu bebê (um bebê, meu deus, só um bebezinho!!! que ainda mamava!!!)...
    o que terá acontecido com eles? como lidar com as marcas profundas que terão sido impressas pra sempre por esse sofrimento?
    não posso nem suportar minhas próprias memórias do tal "visitário", quanto mais tentar imaginar, me colocar no lugar desta mãe, imaginar o sofrimento de seu bebezinho...
    não, é muita dor, muita DOR
    até quando tanta violência? até quando tantos casos como o deste bebê, como o de Joana Marins, como o da nossa Dorinha?
    até quando??????

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  2. Só uma mãe que ama muito para sentir a dor da outra...

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