terça-feira, 18 de março de 2014

A Rebelde e a Encrenqueira

   São especiais e marcantes as grandes amizades da adolescência. É uma espécie de paixão.  Queremos ficar horas e horas com a amiga: rindo, chorando, ouvindo música, falando sobre tudo.  Ligamos todos os dias, saímos juntas todos os finais de semana. Como boa geminiana, tive várias dessas amizades apaixonantes. Com Georgya Corrêa foi amor à primeira vista, quando nos conhecemos, na sala de aula do primeiro colegial, aos 14 anos. Não lembro o motivo pelo qual ela me fascinou, mas certamente foi alguma atitude rebelde. De quebra me apresentou um leque de irmãos, de casamentos passados e futuros de seus pais. Uma árvore genealógica tão ramificada quanto singular.
   A vida foi nos tirando essas horas e dias de cafés, diálogos e risadas dos 15. Nos últimos 25 anos nossos encontros foram esporádicos, com filhos, em festas, jantares, visitas rápidas. Já André, seu irmão e um desses amigos por quem também sou apaixonada, foi menos “esporádico”, sempre me manteve a par das notícias básicas sobre a Geo.
   Numa conexão intuitiva que só os grandes amigos/irmãos conseguem definir, nos reencontramos de uma forma intensa, cúmplice e telepática. Fica quase impossível narrar as 55 horas de lembranças, descobertas e reencontros vividos nesse curto tempo. O principal é que nada mudou, como ela mesma disse, apenas uma vírgula nos separou. Quando me explicava sobre uma certa regra que ela não seguia, porque para ela há regras e regras são feitas para serem quebradas, a cortei para avançar na pauta, pois me explicava o que já sabia: “Ah, tá, rebelde”. Então, Geo fez aquela cara engraçada de frustração, como se tantas terapias tivessem sido inúteis, afinal, continuava uma rebelde. Até perguntou para sua mãe, Elza, que admiro tanto, se achava que ainda era rebelde. “Até que você melhorou 50%”. Nos restou rir com a constatação materna, irrefutável. Quando contei que estou sendo processada por um juiz e chutei a porta de outro, a cena se repete apenas com mudança de atrizes: “Ah, tá, encrenqueira”. Tentei me defender, que não busco brigas, que a vida me coloca em certas situações. Mas ela me lembrou de quem sou, aquela que entrava na briga dos outros, “Dri, você é uma encrenqueira”. E rimos muito, quase nada mudou.
   A madrugada de sábado avançava e nós na cozinha, tomando água e falando das nossas “peias” físicas, emocionais, financeiras e psíquicas. Ambas sofreram acidentes de carro aos 17 anos, no banco do passageiro, com um homem dirigindo, sem cinto de segurança (nem era Lei) e isso nos trouxe transtornos físicos permanentes. Então, baseada em estatísticas de nós duas,  havia 100% de chances de nossas filhas, aos 17 anos, passarem pelo mesmo processo, concluímos “viajandonas”. Rimos muito, tapando a boca para não acordar ninguém, e decidimos que elas estariam proibidas de sair de carro com garotos na direção. Nisso, sua linda e maravilhosa filha Thaís, de 15 anos, acordou, passou por nós com cara de "não acredito que ainda estão acordadas" e disse em tom de compaixão: “adolescentes”. Rimos mais ainda, o que acordou seu marido Tanã (um músico/nadador que adorei conhecer e parecia um desses meus amigos das piscinas), que ficou cuidando de Miranda e Cauã (o filhinho deles, de 3 anos) até dormirem, enquanto eu Geórgya ficamos com todo o tempo do mundo para falar sobre todas as coisas.
   Foi muito esclarecedor perceber que continuo uma encrenqueira, só as proporções que mudaram. Antes eu ia contra a professora repressora, agora é contra um sistema judiciário inteiro. Antes eu brigava com namoradinho de comportamento machista.  Agora é com a sociedade inteira. Antes eu discutia com o cara que lavava a calçada no verão, época em que faltava água. Agora entendo que não é nosso banho de 10 minutos ou a torneira aberta que baixa os reservatórios, mas sim as grandes empresas multinacionais e suas máquinas, a falta de investimento do Governo em sistemas mais sustentáveis, em programas de despoluição das águas (lembrando sempre que empresas poluem indefinidamente mais do que a população civil inteira do País). Agora minha encrenca é com peixe grande... e a rebeldia da Geórgya também!
   Não bastasse toda emoção trazida por nossas recordações e redescobertas, ainda me esperava uma experiência Carlos Castanheda, além de reencontrar a maior parte de seus irmãos, da tal árvore ramificada. André Corrêa, meu amado,  foi ao meu encontro com sua doce filha Manoela. Chegou como sempre chega, afetuoso, sorridente, verborrágico, cheio de novidades. A grande surpresa é que cansou de ser um niilista. “Chega Dri, a vida tem que ser encarada com mais positividade”, me disse de forma meio cênica. Ver esses amigos, com suas filhas, tornou a ausência da Dora mais presente. Ver Miranda e Cauã brincando, rindo juntos, uma nova geração já amiga de infância foi tão lindo! Mas a alegria se misturava com a dor, porque eu imaginava que Dora poderia estar com Thaís, Manoela... esse buraco que aumenta, essa mistura de luz e sombra.
   Há muito tempo eu não chorava tanto quanto chorei no sábado à noite. Ao ponto de um garoto ao meu lado passar lenços de papel. As lágrimas corriam soltas pela música, pelos meus pensamentos infelizes. Mas tornou-se um rio quando Rosa Bertholini, uma mulher tão linda, que generosamente dividiu histórias, cafés e filosofia comigo, narrou com gratidão sua superação de um câncer gravíssimo, sua quase morte. Isso a tornou ainda mais forte. Agradeceu às pessoas, ao lugar, à vida. Falou sobre o medo da morte e o medo da vida. Um medo que quase todos tem, mas eu não tenho, nem da morte, nem da vida. Me senti tão arrogante por essa falta de medo. Me senti mesmo um lixo e continuei chorando, tentando disfarçar o indisfarçável.
  Ainda tentava limpar o rímel borrado quando um garoto de pouco mais de 20 anos, visivelmente debilitado, também se pôs a falar da sua luta para continuar vivo. De sua força de vontade em viajar 13 horas, logo após receber alta hospitalar, para estar ali. Chorei mais e mais e mais. Não resisti, fui me apresentar e dar um abraço em Diego, dizer o quanto ele me tocou. Estava eu, Rosa e Diego falando de hospital, quimioterapia, peso, alimentação, daí chegou um outro cara para contar o caso do irmão, que teve um linfoma há 5 anos. Depois chegou o marido de Rosa, falando sobre mapeamento genético. Tive um acesso de riso interno porque lembrei do filme 50%, em que o protagonista tem câncer, quer fugir do assunto, mas as pessoas ao seu redor só se aproximam para falar sobre a doença. Diego, quero que você leia esse texto, veja esse filme e saiba que você é lindo! 
   Na despedida, um apertado e demorado abraço na minha amiga rebelde. Miranda embaixo, nos abraçou nas pernas. Adoro abraço triplo. Um gosto de “até logo mais” teve essa despedida. Miranda de mãos dadas comigo: “Mãe, você tem tanto amigo legal, né?”. Tenho sim. E os mais antigos são os mais conhecedores de mim. Não sei o que pode acontecer quando duas amigas rebeldes e encrenqueiras na idade juvenil, tornam-se profissionais no assunto e resolvem fazer planos futuros. Só sei que é um grande ato de rebeldia e a maior encrenca querer um mundo melhor. Nós sempre quisemos e vamos continuar querendo. Até o fim e além.

2 comentários:

  1. Fez muito bem, viver e reviver é ótimo... risos e lágrimas renovam os sentimentos, lavam a alma.

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    1. Sim, Liz, é sempre muito bom lembrar quem nós realmente somos :) Bjs

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