sábado, 5 de outubro de 2013

A Espuma dos Dias*

     Após alguns dias de reclusão voluntária e necessária, aceito ir ao cinema. Só sei que é um filme francês lindo, segundo meu amigo Marcelo Santos. No elenco Audrey Tautou, o que já me faz querer vê-lo. Quando alguma atuação me toca aproveito todas as oportunidades de ser tocada novamente. Sua personagem desenvolve uma doença rara: começa a crescer uma flor de lótus em seu pulmão. Pronto, bastou para entrar na pequena sala, com ar condicionado congelante, numa sessão para 30 pessoas 
    O realismo fantástico é cheio de metáforas, o cenário parece de sonhos. Mesmo começando colorido e alegre, o filme é angustiante. O tímido, rico e despreocupado Collin tem dois amigos, um intelectual obcecado pelo filósofo Jean Soul-Partre (paródia rasgada) e um chefe de cozinha, carismático, simpático, talentoso. Collin tem uma vida fácil, abundante, onde o desperdício chega a ser repugnante. A angústia pode estar nesse vazio, mas tudo se transforma quando conhece Chloé, mulher encantadora, cheia de vida, que exala poesia. A timidez do homem quase impede o namoro, tem medo de errar no que poderia ser sua única chance de conquistá-la. Mas a leve Chloé diz que o acerto depende dos dois, se não der desta vez, podem tentar outra e outra e outra. Temos sempre outra chance de acertar.
   Apaixonam-se e casam-se. Logo após o casamento, a jovem descobre a doença, a tal flor de lótus em seu pulmão, para tratá-la toma remédios que lhe fazem passar mal. Precisa fazer com que a flor murche, para então tirá-la de seu corpo, mas ela floresce rápido dentro de Chloé. O marido perde o restante de sua fortuna com o tratamento da esposa. Trabalha pela primeira vez na vida, distanciando-se fisicamente da mulher. E tudo que era colorido e lúdico vai escurecendo, as cores vão saindo do filme. A casa vai mofando, o amigo cuidador se entrega nos cuidados e adoece junto, o obcecado se afunda em sua paranoia. 
  A metáfora é clara para quem conhece ou conheceu uma pessoa com câncer. Por algum motivo desconhecido (ou não*) a doença ataca. A pessoa que é cheia de planos, vida, esperança, amigos, fica prostrada, surpreendida, com dificuldade de tomar decisões, precisa de rumo e de muito apoio. Precisa ter suporte emocional, financeiro, físico. Muitas vezes os que estão ao seu lado também precisam. A doença pega todo mundo desprevenido. Ninguém está preparado para uma flor de lótus crescendo do nada em seu corpo.
    É como enfrentar o desconhecido diariamente, que nada mais é do que a vida de todos nós. Mas é também sentir dores físicas e emocionais por tempo indeterminado. Os que sentem a flor crescer realmente tem de aguentar. Os que estão do lado podem desistir, abandonar, ignorar. Cada um sabe a sua dor, o tamanho da sua resistência, paciência e amor. Alguns não aguentam. Outros podem superar os limites físicos e mentais, doando-se inteiramente, mesmo que no final a pessoa morra. Todos irão morrer mesmo. É a única certeza. A diferença é como cada um morre e o que deixará de bom no coração e nas mentes das pessoas. E quanto mais pessoas puderem dividir histórias, de dores e alegrias, mais leve e mágica segue a vida.

*Alguns motivos são conhecidos e relevantes, como genética, consumo de cigarros e álcool, exposição excessiva ao sol. Há várias maneiras de prevenir o aparecimento de alguns tumores, com exames preventivos simples. 

*Filme francês (2012), direção de Michel Gondry, adaptado do livro surrealista L'ecume des Jours (1947), do escritor francês Boris Vian. Com Audrey Tautou e Romain Duris.

5 comentários: