terça-feira, 1 de outubro de 2013

O Fantasma do Alzheimer

    Quando meu pai já estava muito estranho, já até perdendo-se pela cidade, um dia foi até o meu apartamento. Eu ainda estava de camisola, jogada, pensando na minha filha de 3 anos, que eu via no Visitário Público de São Paulo todos os sábados, das 10h às 16h. A tortura era tanta que eu demorava até a semana seguinte para me recompor. Isso em 2005. O interfone tocou e pedi para mandar subir, meu pai nem me ligava mais, achei curioso ir me ver. Voltava da casa do único irmão, meu tio Filipe*, que foi-se para sempre de maneira rápida, dia 17 de junho deste ano, do coração. O porteiro teve de subir com meu pai, que não acertava o número 10 no elevador.
      Estava tão deprimida que não consegui me trocar e descer para buscá-lo. Ofereci água, conversamos um pouco e disse que tinha ido visitar a mãe, minha querida Maria do Carmo Brites, a vovó portuguesinha de 1m45cm, de cabelos branco total e olhos imensos e azuis. Mas ela havia morrido no final de 2004... foi o primeiro grande alarme: meu pai poderia ter Alzheimer. Mesmo pensando tudo isso, não conseguia agir. Pouco depois ele saiu, confundiu o elevador com a porta do vizinho. Não tive forças para seguir com ele. Olhei pela janela meu pai quase ser atropelado ao atravessar a rua, já não dirigia, ia pegar um ônibus. Nunca esqueço esse dia e não ter seguido com ele nesse momento é o maior arrependimento da minha vida. Ter deixado a tristeza me dominar ao ponto de não ajudar quem sempre me guiou nessa jornada inglória. Sempre lembro deste dia e choro.
        Certa vez chegou nervoso porque tinha perdido o dinheiro que estava em seu bolso, era o aluguel da casa da minha avó, em São Vicente. O irmão dele não acreditou que tinha perdido o dinheiro. Na verdade era difícil para todo mundo acreditar que aquele homem não conseguia realizar tarefas antes tão simples.
         O diagnóstico preciso veio em 2006. Estávamos juntos com a médica. Ainda em momento de lucidez constatou: "Quer dizer que vou morrer de Alzheimer?". "Se você tiver sorte, pai, pode ter antes um avc (acidente vascular cerebral)", respondi com o humor sarcástico que herdei ou aprendi com ele. Mas o Mal de Alzheimer não tem graça nenhuma. Hoje fiquei sabendo que Gabriel García Márquez, um dos meus autores favoritos, está com Alzheimer também. Talvez hajam tantos com essa doença porque nunca a população mundial foi tão longe na vida. Também porque os diagnósticos são mais precisos. Não há nada mais triste do que perder quem você ama a cada dia. Meu pai, meu exemplo em quase tudo, minha referência na tolerância, no diálogo, na mente aberta, nas explosões iradas seguidas de pedido de perdão, disse que nunca esqueceria de mim. Mas esqueceu. Nem se reconhecia no espelho.

      Como essa doença é genética, tenho de 20 a 40% de chances de desenvolvê-la. Como sou muito parecida com ele, acho que as chances são muitas mesmo. O perfil do paciente, antes de desenvolver a doença é de uma pessoa extremamente ativa, falante, inteligente. É tipo um excesso de produção das células nervosas, inflama tudo na cabeça, é muito neurônio. Por isso devoro todas as publicações a respeito, quero evitar ao máximo a dependência absoluta. Minhas filhas não merecem isso. Entre as formas de prevenção (ou adiamento) estão praticar esporte, conhecer lugares novos, aprender novos idiomas, ler muito, exercitar e oxigenar o cérebro ao máximo, ou seja, é preciso ter muito tempo e dinheiro, coisas que não tenho. Me resta escrever para quando eu esquecer todas as minhas histórias, minhas filhas possam lê-las.
      Meu pai também era um grande contador de histórias incríveis, teve uma vida cheia de viagens e fatos interessantes, até se afogar no trabalho para deixar algo de bom para mim e minha mãe. De nada adiantou, já com Alzheimer, foi perdendo todos os seus bens, os bancos levaram carros, imóveis, terrenos, comércio... mas o que ele tinha de melhor ficou comigo. Parte de seus livros também estão comigo. Mas não consigo me concentrar suficientemente para lê-los.
      Sobre a doença li também que estresse contínuo e profundo aceleram o processo. O que eu vivo há anos mesmo? Mas tenho um alento, se eu tiver a doença será uma forma de esquecer de tudo e todos, desse círculo vicioso de erros que se tornou minha vida, dessa dor de ter perdido uma filha para a Justiça, de ser mãe pela metade da outra filha, de não conseguir me reerguer, de ser detonada o tempo todo por gente que nunca me viu. Os que amo serão os últimos a serem esquecidos, porque o Alzheimer é assim, vai restando o que importa, até não restar mais nada.
      Coincidência ou não hoje é Dia do Idoso, se você tem alguém que ama com Alzheimer, abrace muito, as palavras perdem o significado, os gestos não.

    * Filipe Correia Mendes era meu único tio por parte de pai. Numa internação em que seu irmão ficou na UTI e só sairia de lá usando fraldas geriátricas e numa cadeira de rodas, não quis acreditar, repetia que "o Abel não está em condições de sair assim".
     Meu tio era um homem muito inteligente, apesar da diabetes que estava lhe tirando a visão, tinha plenas condições mentais, mas não conseguia aceitar ver seu irmão assim. Nesse dia no hospital, me contou coisas dos dois que me emocionaram muito. Achava meu tio arrogante, mal humorado, mas tinha uma razão forte para isso, da infância, que eu só soube depois.
     Quando vieram para o Brasil ele tinha 12 anos e meu pai 10. Minha avó detestou o mangue da praia de Santos e foi com o "Abelito" para a Argentina, onde morava parte de sua família. Deixou Filipe com o pai, Manuel, porque se levasse os dois, certamente o marido galã arrumaria outra mulher. Me coloquei no lugar daquela criança de 12 anos, em um País distante, com idioma igual, mas fala diferente, longe da mãe e do irmão e, pior, sentir-se o preterido. A arrogância nada mais era do que sua forma de defender-se do mundo. Custei a entender mas, felizmente, nos últimos anos, ficamos próximos, até me ajudou resolvendo uma pendência jurídica no início deste ano (era advogado).
      Numa de nossas últimas conversas falou muito da infância em Portugal, das brincadeiras na neve, de como o Abel era o preferido da turma. Estava me preparando para voltar de Ribeirão Preto quando recebi  a ligação de Filipinho, meu primo mais velho, sobre o falecimento. Nem dormi na viagem, me arrumei e fui direto para o velório. Estávamos nos três: eu, Filipinho e Ana Maria. Meu pai só teve a mim, meu tio só teve os dois. Ana não teve filhos, Filipinho tem uma filha, Izabela, que mora em Rondônia. Nós três ali abraçados éramos a família Mendes. Senti ali como é bom ter família, por menor que seja. Espero que o meu fantasma só assombre a mim.

6 comentários:

  1. Oi Adriana!
    Acabo de ler seu post e fiquei com os olhos marejados. Conversamos uma vez pelo Facebook, através da Dri (mãe da Sof e da Manu)... ela me passou seu contato quando contei a ela sobre os problemas que eu e minha família estávamos enfrentando com a minha avó, vítima do Alzheimer. Não sei se vc se recorda...
    Esse seu post mexeu muito comigo.
    Minha avó atualmente encontra-se na casa de repouso, desde 31 de Março desse ano. A memória cada vez pior e pior... mas, como vc citou ali em cima, ela ainda se lembra de mim, da minha mãe e às vezes do meu pai. Especialmente de mim e da minha mãe, que, imagino, somos as pessoas que ela mais amava. Ela fica feliz quando vou visita-la, mas muitas vezes ñ sabe que sou sua neta, e quase nunca lembra meu nome. Eu a abraço, beijo e seguro sua mão o tempo todo, sempre, e ela retribui. É incrível o que essa doença faz com a pessoa. A pessoa perde a capacidade de entender o tempo e o espaço, não sabe quem são aquelas pessoas ao seu lado, mas sabe que as ama. Pelo menos por um tempo. Sei que não demorará muito para minha avó não se lembrar mais que me ama.
    Assim como seu pai, ela sempre foi uma pessoa de personalidade forte, que comandava o lar! As coisas sempre tinham que ser do jeito dela, sempre! O diagnostico de Alzheimer, em 2005, foi devastador! Mas as coisas degringolaram mesmo em Dezembro do ano passado! E degringolaram de uma vez, como se um furacão passasse nas nossas vidas e na dela.

    Foi um prazer descobrir seu blog, serei sua nova seguidora a partir de agora!

    Beijo grande.

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    1. Lembro Maíra, claro. Lembro também que vc é filha única e, se não me engano, única neta. Lembro de ter escrito sobre a necessidade de colocá-la numa clínica de repouso... é dolorido, mas necessário. Depois de ir para a clínica ela lembrará cada vez menos, porque acordará com pessoas que não reconhece, nem o lugar, nem os cheiros. Visite-a o máximo que puder. Por conta dos problemas que não param de acontecer na minha vida, fiquei 2 meses sem ver meu pai... e ele nunca mais lembrou de mim... e eu sinto uma culpa que me corrói e não desejo para ninguém que tenha um pai, mãe, avós nessa condição. Espero poder te ajudar de alguma forma, grande beijo!

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    2. Obrigada pela mensagem de apoio, Adriana!
      Pois é, eu e minha mãe somos filhas únicas, então eu meio que me sinto uma "irmã" pra ela, sabe? Meus avós sempre foram como meu 2º pai e 2ª mãe, então o sentimento que tenho pela minha avó é muito mais intenso! Nós estamos tentando levar da melhor forma possível essa situação! Minha mãe se conformou que esse foi o melhor caminho (casa de repouso), pois ela e meu pai já estavam começando a adoecer com a situação caótica de cuidar da minha avó em casa. Minha avó fica calma quase que o tempo todo na casa de repouso, muito mais do que em casa! O psiquiatra e a neuro explicaram que isso é normal, pois o fato dela não ver minha mãe o tempo inteiro faz com que ela não sinta emoções tão fortes, com as quais ela não consegue lidar mais, por causa do Alzheimer. Minha mãe a visita dia sim/dia não, e sempre fica umas 2h pelo menos com ela, durante às tardes. Outro ponto positivo é que a irmã do meu avô também está morando nessa casa de repouso, e ela e minha avó sempre fizeram muitas coisas juntas, então isso dá à minha avó uma sensação maior de "lar", sabe? Eu, infelizmente, como moro numa cidade diferente, acabo vendo minha avó pouco! Fiquei 5 meses sem vê-la esse ano, e meu coração ficou apertado quando fui visita-la em Agosto, mas ela me reconheceu (só que daquele jeito, nem sempre lembra meu nome e nem sempre lembra que sou sua neta). Tento viajar sempre que posso para vê-la, mas infelizmente o tempo é corrido e a situação financeira da minha família está tão apertada com os gastos da casa de repouso que nem sempre tenho grana para ir vê-los (são 9h de viagem de ônibus e as passagens aéreas estão muito caras)!
      Grande beijo pra vc também e obrigada por compartilhar sua vida com a gente!

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    3. Maíra, minha querida (já me sinto sua amiga), que bom que de alguma forma eu tenha te confortado... a internação do meu pai também me deu uma baixa monetária... mas, como vc mesma sabe, fica caótico um paciente com alzheimer, em dependência total, em casa. Os cuidados precisam ser especiais, precisa de braços fortes para carregá-lo e preparo profissional para aguentar o emocional. Mais do que sua avó, agora é hora de dar força para os seus pais... nunca deixe que sintam culpa por nada! Apesar de ser ateia, sinto tanta culpa por tanta coisa... mas não dá para voltar atrás e só tentar melhorar o daqui para frente...

      Sinto que iremos nos conhecer em breve! Grande beijo!

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  2. Adri é impressionante a sua capacidade de escrever sobre coisas tão profundas de uma forma tão delicada, humana e sincera. Sou seu fã incondicional. Grande beijo!

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